A Menina Sem Nome

Ela era uma criança como outra qualquer, mas ninguém se preocupava em saber seu nome, suas preferências, seus sonhos... Assim, dois ou três anos se passaram, de segunda a sexta, de fevereiro a dezembro.

Como um vulto ou uma sombra andava entre nós. Falava pouco, andava de cabeça baixa. Era magra, raquítica, tinha as roupas rasgadas e sujas. Descobrimos que morava à beira do rio. Sua casa era um casebre torto, uma mistura de papelão, zinco, pedaços de madeira e latas de óleo e leite em pó. Seu pai tirava o sustento do rio. Rio Beberibe. Imundo, águas escuras, mal cheirosa, cheio de dejeto e carniça. Ele passava o dia com água até a cintura pegando areia, a colocava numa espécie de barco, depois a lançava para o leito do rio. Esperava a chuva ou que a água imunda escorresse naturalmente para que a areia ficasse com uma cor mais clara. Lembro da água preta que saia da areia recém tirada... Parecia borra de café. Fedia muito.

Aquele pai era preto. Não sei dizer se era a cor natural da pele, se era efeito do tempo exposto ao sol ou se era por causa da água escura do rio. Só sei dizer que a sua pele parecia da cor de chocolate amargo. A menina era de uma cor escura, sem ser totalmente negra. Nunca fomos convidadas para irmos àquela casa, também nunca a convidamos para vir à nossa. Não sabíamos como tratá-la. Os professores despreparados nada faziam para diminuir aquela distância que havia entre a menina sem nome e a garotada. Na nossa ignorância agimos com arrogância, orgulho, crueldade... Tudo isso, resultado de algo que ainda hoje tanto mal tem causado e que tem por nome: PRECONCEITO.

Após a 3ª ou 4ª série, ela deixou de vir à escola. Nunca procuramos saber o motivo. Passávamos em frente daquela casa e quando ela nos via, se escondia. Escondia-se por medo, vergonha? Nunca soubemos. Também que iria adiantar, éramos seus carrascos. Por que desejaria voltar? O que ela não sabe é que saiu da escola, mas não da nossa vida. Ela deixou sua marca. Através do seu silêncio, do seu olhar e do corpo encolhido grita até hoje: Eu só queria ser amada!

O que me fez lembrar aqueles anos e da menina sem nome? Talvez o seu olhar. Era o olhar mais triste que eu já vi. Nele havia uma mistura de vergonha, fome, medo, dor. Mais de três décadas depois tenho viva sua lembrança. Lembrança de um ser humano que passou e que não teve chance de ser criança entre nós.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 10/02/2010
Código do texto: T2080023
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