A Consciência Angustiante de Existir

O verdadeiro mar é frio e negro, cheio de animais; roja-se por baixo daquela delgada película verde feita para enganar as pessoas. Os silfos que me cercam caíram no logro: vêem apenas a película delgada; é ela, ou outra coisa, que provam a existência de Deus? Rodo sobre mim próprio e as coisas rodam comigo, esbranquiçadas e verdes como ostras. Por quê? Por que razão saltei para o carro, uma vez que não quero ir a parte nenhuma?

Vejo através dos vidros, desfilarem objetos azulados, tesos e arrogantes, aos sacões. Pessoas, paredes; uma casa oferece-me, pelas janelas abertas, o seu coração negro; e os vidros tornam pálido, azulado, tudo o que é negro; sarapintam de azul aquele grande edifício de tijolos amarelos que avança para mim, hesitante, estremecendo, e de repente estaca, assestado contra o carro. Um sujeito sobe e senta-se na minha frente. O edifício amarelo põe-se de novo em movimento; vem, num salto, rasar as janelas; está tão perto que já só se lhe vê uma parte; fez-se escuro. Os vidros tremem. O edifício eleva-se, esmagador, muito mais alto do que se pode ver, com centenas de janelas abertas sobre interiores negros; passa revés pelo carro, roça por ele; pôs-se escuro entre os vidros, que tremem. O casarão desliza interminavelmente, amarelo como lama, e os vidros tornam-se azul--celeste. E de repente já lá não está, ficou para trás; uma viva claridade cinzenta invade o carro e espalha-se por toda a parte com uma inexorável justiça; é o céu; pelos vidros vêem-se agora camadas e camadas de céu, porque vamos a subir a colina e se vê claramente dos dois lados, à direita até ao mar. À esquerda até ao campo de aviação. Proibição de fumar mesmo o mais reles cigarro. Finco a mão no assento, mas retiro-a precipitadamente: aquilo existe. Esta coisa sobre a qual estou sentado, na qual finquei a mão, chama-se um banco. Fizeram-na de propósito para nos podermos sentar nela; foram buscar couro, molas, pano; puseram-se a trabalhar com a idéia de fazer um banco, e, quando acabaram, era isto que tinham feito.

Trouxeram a coisa para aqui, para este carro, para esta caixa, e a caixa anda e agora vai aos solavancos, com os vidros a tremer, e leva nas ilhargas esta coisa vermelha. Murmuro: “É um banco”. Um pouco à maneira dum exorcismo. Mas o nome fica-me nos lábios: recusa-se a ir pousar no nomeado. A coisa permanece o que é, com a sua pelúcia vermelha, cuja felpa são milhares de minúsculas patinhas, apontadas para o ar e tesas, minúsculas patinhas mortas. Esta enorme barriga virada para cima, ensangüentada, inchada - engrossada por todas estas patinhas mortas, barriga a boiar nesta caixa, sob o céu cinzento, não é um banco. Podia muito bem ser, igualmente, um burro morto, por exemplo, inchado pela água e a boiar à deriva, de pernas para o ar, um grande rio cinzento, um rio de inundação; e eu iria sentado na barriga do burro e os meus pés mergulhariam na água clara. As coisas libertaram-se dos “seus nomes”. Estão presentes, grotescas, teimosas, gigantes, e parece idiota chamá-las bancos, ou dizer seja o que foi acerca delas: estou no meio das coisas, das inomináveis. Sozinho, sem palavras, sem defesas; e as coisas cercam-me: por baixo de mim, por trás, por cima. Não exigem nada, não se impõem: estão presentes. Por baixo da almofada do banco, ao rés do tabique de madeira em que ela se encaixa, há uma pequena linha de sombra, uma estreita linha preta que corre paralelamente ao banco, misteriosa e maliciosamente, dir-se-ia, quase como um sorriso. Sei muito bem que não é um sorriso, e, entretanto é algo que existe, que corre por baixo dos vidros esbranquiçados, sob o barulho dos vidros que se obstina, por baixo das imagens azuis que desfilam do outro lado dos vidros e param e voltam a andar, que se obstina, como a recordação imprecisa dum sorriso, como uma palavra meio esquecida, cuja primeira sílaba é a única que nos lembra, de tal maneira que o melhor que há a fazer é desviar os olhos e pensar noutra coisa, naquele homem meio deitado por cima do banco na minha frente, pronto! Tem uma cabeça de terracota com olhos azuis. A direita do corpo descaiu-lhe toda, o braço direito está pregado ao flanco; essa metade do homem vive imperceptivelmente, a custo, com avareza, como se estivesse paralisada: mas por todo o lado esquerdo há uma existência parasita a proliferar, uma úlcera: o braço se pois a tremer e depois se levantou, e a mão estava tesa na ponta. E depois a mão se pôs a tremer também, e, quando chegou à altura do crânio, um dedo estendeu-se e pôs-se a coçar no couro cabeludo com a unha. Uma espécie de careta voluptuosa veio habitar o lado direito da boca, e o lado esquerdo continuava morto. Os vidros tremem, o braço treme, a unha coça, coça, a boca sorri por baixo dos olhos fixos, e o homem suporta sem dar por isso essa existência que lhe vai intumescendo o lado direito, que se serviu do seu braço direito e da sua face direita para se realizar. O condutor barra-me o caminho.

Mas eu afasto-o e salto para fora do carro. Não agüentava mais que as coisas estivessem tão próximas. Empurro uma cancela, entro, existências leves formam salto e empoleiram-se nos cumes. Agora percebo, vejo onde estou: no jardim. Deixo-me cair num banco entre os grandes troncos negros, entre as mãos negras e nodosas que se erguem para o céu. Uma árvore raspa a terra por baixo dos meus pés com uma unha negra. Gostava tanto de me abandonar, de me esquecer de mim, de dormir. Mas não posso, sufoco: a existência penetra em mim por todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela boca... E bruscamente, num repente, rasga-se o véu; compreendi, vi.

Não posso dizer que me sinta aliviado nem contente; pelo contrário, estou esmagado. Somente, atingi o meu fito: sei o que queria saber; compreendi finalmente tudo o que me vem sucedendo desde o início de Janeiro. A indigestão de ser não me abandonou, e não creio que me abandone tão cedo; mas deixei de sofrer com ela, não se trata já duma doença nem dum acesso passageiro: o Hades Sou Eu.

Estava então há um certo tempo no jardim. A raiz do castanheiro mergulhava na terra, mesmo por baixo do meu banco. Não me lembrava, porém, que era uma raiz. As palavras tinham-se evaporado, e, com elas, o significado das coisas, os seus modos de emprego, os pálidos pontos de referência que os homens lhes traçaram à superfície. Estava sentado, um pouco curvado, cabisbaixo, sozinho em frente daquela massa negra e nodosa, completamente em bruto e que metia medo. E depois tive aquela iluminação. Fiquei sem respiração. Nunca, antes destes últimos dias. Eu tinha pressentido o que queria dizer “existir”. Era como os outros, como os que passeiam à beira-mar nos seus trajos de Primavera. Dizia, como eles: “O mar é verde: aquele ponto branco, acolá, é uma gaivota”; mas não sentia que essas coisas existiam, que a gaivota era uma “gaivota existente”; geralmente a existência esconde-se. Está presente à nossa volta, em nós, somos nós; não se podem dizer duas palavras sem falar dela, e afinal não lhe tocamos. Quando eu julgava pensar nela, é de crer que não pensava em nada, tinha a cabeça vazia, ou quando muito uma palavra na cabeça, a palavra “ser”. Ou então pensava... Como dizer? Pensava na filiação; dizia para comigo que o mar pertencia à classe dos objetos verdes, ou que o verde fazia parte das qualidades do mar. Mesmo quando olhava para as coisas, estava a cem léguas de sonhar que elas existiam: as coisas apareciam-me como um cenário. Pegava nelas, elas serviam-me de utensílios, previa-lhes a resistência. Mas tudo isso se passava à superfície. Se me tivessem perguntado o que era a existência, teria respondido de boa fé que não era nada, que era apenas uma forma vazia que vinha juntar-se às coisas por fora, sem lhes modificar em nada a sua natureza. E depois sucedeu aquilo: de repente, ali estava, ali estava, era claro como a água: a existência dera-se subitamente a conhecer. Perdera o seu aspecto inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa das coisas; aquela raiz estava amassada em existência. Ou antes, a raiz, o gradeamento do jardim, o banco, a relva rala do tabuleiro, tudo se tinha evaporado: a diversidade das coisas, a sua individualidade, já não era mais que uma aparência, um verniz. Esse verniz derretera-se; restavam massas monstruosas e moles, em desordem - nuas, duma medonha e obscena nudez.

Eu fugia a fazer o menor movimento, mas não precisava de me mexer para ver, por trás das árvores, as colunas azuis e o lampadário do coreto. Todos aqueles objetos - como dizer?“incomodavam-me”; teria desejado que existissem com menos intensidade, duma maneira mais seca, mais abstrata, com mais recato. O castanheiro metia-se pelos olhos dentro. Cobria-o até meia altura uma ferrugem verde; a casca, negra e empolada, parecia de couro fervido. O leve ruído da água da fonte escorria-me pelos ouvidos e fazia neles um ninho, enchia-os de suspiros; as narinas trasbordavam-me dum odor verde e pútrido. Todas as coisas, suave, ternamente, se entregavam à existência como essas mulheres cansadas que se abandonam ao riso, dizendo com uma voz molhada: “Rir faz bem”; exibiam-se umas em frente das outras, faziam umas às outras a confidência abjeta da sua existência. Percebi que não havia meio termo entre a inexistência e aquela abundância extática. A existir-se, era necessário existir até àquele ponto, ale ao bolor, à tumidez, à obscenidade. Num outro mundo, os círculos, as melodias, conservam as suas linhas puras e rígidas. Mas a existência é um aviltamento. Árvores, pilares tingindo-se de azul ao crepúsculo, o estertor feliz duma fonte, odores que tinham vida, nevoeiros de calor que boiavam no ar frio, um homem ruivo a fazer a digestão sentado num banco: todas essas sonolências, todas essas digestões, consideradas juntamente, ofereciam um aspecto vagamente cômico. Cômico... Não: não chegava a ser cômico; nada do que existe pode sê-lo; era como uma analogia indecisa, quase imperceptível com certas situações. Éramos um montão de existentes incômodos, embaraçados com nós mesmos; não tínhamos a menor razão para estar ali, nem uns nem outros; cada existente, confuso, vagamente inquieto, se sentia de mais em relação aos outros. De mais: era a única relação que eu podia estabelecer entre aquelas árvores, aquelas grades, aquelas pedras. Em vão procurava contar os castanheiros, comparar-lhes a altura com a dos plátanos: cada um deles fugia às relações em que eu procurava encerrá-los, se isolava, trasbordava. Essas relações (que eu teimava em manter para adiar o desabamento do mundo humano, das medidas, das quantidades, das direções), bem lhes sentia o arbitrário; tinham deixado de morder nas coisas. De mais, o castanheiro, ali, na minha frente, um nadinha à esquerda...

Felizmente não o sentia, compreendia-o sobretudo, mas não estava à vontade, porque tinha medo de passar a senti-lo (ainda neste momento tenho medo; tenho medo de que esse sentimento se aproxime por trás de mim, e me apanhe à traição, e me levante como uma onda submarina). Pensava vagamente em suprimir-me, para aniquilar ao menos uma daquelas existências supérfluas. Mas até a minha morte teria sido de mais. De mais, o meu cadáver, o meu sangue tingindo aquelas pedras, ao fundo daquele jardim risonho. E a carne roída teria sido de mais no seio da terra que a tivesse recebido, e os meus ossos, enfim, destacados, descarnados, limpos e polidos como dentes, ainda teriam sido de mais: continuarei eternamente a ser de mais.

Vem-me agora à pena a palavra “absurdo”; há no jardim, não a encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: ia pensando sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. O absurdo não era uma idéia na minha cabeça, nem um sopro da voz, mas aquela longa serpente morta a meus pés, aquela serpente de madeira. Serpente ou unha de carnívoro ou raiz ou garra de abutre, pouco importa.

E sem formular claramente nenhum pensamento, eu compreendia que tinha encontrado a chave da Existência, a chave das minhas náuseas, da minha própria vida. De fato, tudo quanto pude alcançar em seguida me fez voltar à noção desse absurdo fundamental. Absurdo: outra palavra, afinal; debato-me com palavras; no jardim cheguei a atingir as coisas. Mas gostava de fixar aqui o caráter absoluto daquele absurdo. Um gesto, um acontecimento no pequeno mundo colorido dos homens nunca é absurdo senão relativamente: em relação às circunstâncias que o acompanham. As palavras dum doido, por exemplo, são absurdas em relação à situação em que ele se encontra, mas não em relação ao seu delírio. Mas eu, ainda agora, tive a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo.

Aquela raiz, não havia nada em relação a que ela não fosse absurda. Oh! Como poderei fixar isso com palavras? Absurda: em relação às pedras, aos tufos de erva amarela, à lama seca, à árvore, ao céu, aos bancos verdes. Absurda, irredutível; nada - nem sequer um delírio profundo e secreto da natureza - podia explicá-la. É claro que eu não sabia tudo, não tinha visto a semente germinar nem a árvore crescer. Mas, diante daquela espessa massa rugosa, nem a ignorância nem o saber tinham importância: o mundo das explicações e das razões não é o da existência. Um círculo não é absurdo; explica-se muito bem pela rotação dum segmento de reta em torno de uma das suas extremidades. Mas também um círculo não existe. Aquela raiz, pelo contrário, existia na medida em que eu não podia explicá-la. Nodosa, inerte, sem nome, fascinava-me, enchia-me os olhos, chamava-me constantemente a atenção para a sua própria existência. Por mais que eu repetisse: “É uma raiz”, o artifício não surtia efeito. Eu via bem que não se podia passar da sua função de raiz, de bomba aspirante, àquilo, àquela pele dura e compacta de foca, àquele aspecto oleoso, caloso, pertinaz. A função não explicava nada: permitia que se soubesse por alto o que era uma raiz, mas não aquela raiz. Aquela, com a sua cor, a sua forma, o seu movimento petrificado, estava... Abaixo de qualquer explicação. Cada uma das suas qualidades lhe escapava um pouco, escorria para fora dela, se tornava meio sólida, uma coisa quase; cada uma era de mais na raiz, e o cepo dava-me então a impressão de sair um pouco para fora de si próprio, de se negar, de se perder num estranho excesso. Raspei com o calcanhar aquela garra preta: tinha vontade de esfolá-la um pouco. Por nada, por desafio, para fazer surgir no couro curtido o cor-de-rosa absurdo duma escoriação. Para brincar com o absurdo do mundo. Mas quando afastei o pé vi que a casca tinha permanecido preta.

“Preta”? Senti a palavra esvaziar-se, despojar-se do seu sentido com uma rapidez extraordinária. Preta? A raiz. Não era preta, não era a cor preta que havia sobre aquele pedaço de madeira, era... Outra coisa: o preto, como o círculo, não existia. Olhava para a raiz: era mais que preta ou quase preta? Mas depressa cessei de me interrogar, porque tinha a impressão de estar em terra conhecida. Sim, já tinha escrutado, com aquela inquietação, objetos inomináveis, já tinha procurado, em vão, pensar alguma coisa acerca deles: e já lhes tinha sentido as qualidades, frias e inertes, esquivarem-se, esgueirarem-se por entre os dedos. Não eram roxos. Revi as duas manchas indefiníveis sobre a camisa. E a pedra, a famosa pedra que eu quisera deitar à água, a origem de toda esta história: não era... Não me lembrava bem, ao certo, do que ela recusava ser. Mas não me tinha esquecido da sua resistência passiva. Tinha-me lembrado dum grande verme branco, mas também não era isso. E a transparência equívoca do copo de cerveja. Equívocos: eis o que eram os sons, os perfumes, os sabores. Quando nos passavam rapidamente pelo nariz, como lebres acorrentadas, e não lhes prestávamos demasiada atenção, podiam-se achar naturalíssimos e tranqüilizadores; podia-se pensar que havia no mundo azul verdadeiro, vermelho verdadeiro, verdadeiro odor de amêndoa ou de violeta. Mas, assim que os retínhamos um instante, esse sentimento de naturalidade e de segurança era substituído por uma profunda indisposição: as cores, os sabores, os cheiros, nunca eram verdadeiros, nunca eram simplesmente eles próprios e apenas eles próprios. A qualidade mais simples, a mais indecomponível, continha exageros em si própria, em relação a ela própria, na sua alma. Aquele “preto”, ali, junto ao meu pé, não tinha um ar de ser preto, mas de ser antes o esforço confuso de alguém, que nunca a tivesse visto, para imaginar a cor preta; de alguém que não tivesse sabido deter-se e tivesse imaginado um ser ambíguo para além das cores. Parecia-se com uma cor, mas também... Com uma pisadura ou ainda com uma secreção, e com outra coisa, com um odor por exemplo; era algo que se fundia num odor de terra molhada, de madeira morna e molhada, num odor negro estendido como um verniz por sobre aquela madeira, num sabor de fibra mascada, adocicada.

Aquele preto, eu não me limitava a vê-lo: a vista é uma invenção abstrata, uma idéia descarnada, simplificada, uma idéia de homem, aquele preto, presença amorfa e titia, excedia, de longe, a vista, o olfato e o gosto. Mas essa riqueza descambava em confusão, e finalmente a qualidade que a determinava deixava de se identificar com o que quer que fosse, porque era o que era exageradamente.

Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas, no próprio seio desse êxtase, qualquer coisa de novo acabava de aparecer; eu compreendia a indigestão de ser-me e ver, possuía-a. A bem dizer, não formulava intimamente as minhas descobertas. Mas creio que me seria fácil, agora, traduzi-las em palavras. O essencial é a contingência. Quero dizer que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é estar presente, simplesmente; os existentes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca se podem deduzir. Há pessoas, creio eu, que perceberam isto. Somente, tentaram dominar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão de óptica, uma aparência que se possa dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito, este jardim, esta cidade e eu mesmo. É o sentimento disso, quando acontece que ele entra em nós, que nos dá volta ao estômago, e então começa tudo a andar à roda como da outra vez... Mas a mentira é pobre: ninguém existe por direito; os burgueses são inteiramente gratuitos, como os outros homens; não conseguem deixar de se sentir de mais. E, no seu íntimo, em segredo, transbordam do que são, existem exageradamente, isto é, duma maneira amorfa e vaga; tristes.

Quanto tempo durou aquela fascinação? Tinha-me tornado na raiz do castanheiro. Ou, melhor, reduzira-me inteiramente à consciência da sua existência. Permanecia ainda separado da raiz - visto que tinha consciência dela.Todavia, estava perdido nela, não era senão ela. Uma consciência pouco à vontade, que, porém, se abandonava com todo o seu peso, sem que algo a retivesse sobre aquele pedaço de madeira inerte. O tempo tinha parado: uma poça negra a meus pés; era impossível que alguma coisa viesse após aquele momento. Poderia ter tentado arrancar-me àquela atroz volúpia, mas nem sequer me passava pela cabeça que isso fosse possível; estava metido nela; o cepo negro não ia para baixo, continuava ali, a encher-me os olhos, como um bocado maior se atravessa numa garganta. Não me era possível aceitá-lo, nem recusá-lo. À custa de que esforço não levantei os olhos? E será exato que os levantei? Não me teria antes reduzido ao nada, durante um momento, para renascer no momento seguinte com a cabeça deitada para trás e os olhos vidrados para o alto? De fato, não tive consciência duma transição. Mas, de repente, tornou-se para mim impossível conceber a existência da raiz. A raiz tinha-se apagado; e por mais que eu repetisse intimamente: “A raiz existe, ainda ali está, por baixo do banco, junto do meu pé direito”, estas palavras já não tinham o menor sentido. A existência não é qualquer coisa que se deixe conceber de longe: é preciso que o sentimento dela nos invada repentinamente, se detenha em cima de nós, nos ponha um peso intenso no coração, como um grande animal imóvel: porque, a não ser assim, nunca se saberá o que ela é.

Tinha-se acabado; os meus olhos estavam vazios, e eu encantado com a minha libertação. Depois, bruscamente, se pôs tudo a abanar diante dos meus olhos, com movimentos leves e incertos: o vento agitava o cimo da árvore. Não me desagradava ver qualquer coisa mexer; varriam-se, aos meus olhos, assim da cabeça todas aquelas existências imóveis que olhavam para mim como olhos inalteráveis. Ia dizendo para comigo, enquanto seguia o balanço dos ramos: os movimentos nunca existem completamente, são passagens, intermédios entre duas existências, tempos fracos.

E estava à espera de ver os ramos sair do nada, amadurecerem pouco a pouco, desabrocharem: ia, enfim, surpreender existências no ato de nascerem.

Bastaram três segundos para serem varridas todas essas esperanças. Não conseguia, fitando aqueles ramos que tateavam em sua volta como cegos, ter a percepção duma transição para a existência. Essa idéia de transição, de passagem, era outra invenção dos homens. Uma idéia clara de mais. Todas aquelas pequeninas agitações se isolavam, se erigiam em seres autônomos. Trasbordavam por todos os lados da folhagem e dos ramos. Remoinhavam à roda dessas mãos secas, envolviam-nas em pequenos ciclones. Decerto um movimento era uma coisa diferente duma árvore. Mas era, não obstante, um absoluto. Uma coisa. Nunca os meus olhos encontravam senão plenitudes. Na ponta dos ramos pululavam existências, existências que se renovavam sem cessar e não nasciam nunca. O vento existente vinha pousar na árvore como uma mosca imensa; e a árvore arrepiava-se. Mas o arrepio não era uma qualidade nascente, uma passagem, da potência ao ato; era uma coisa; uma coisa-arrepio corria pela árvore, tomava conta dela, sacudia-a, e, de súbito, abandonava-a, ia para outro lado rodopiar sozinha. Tudo estava cheio, tudo era em ato, não havia tempos fracos: tudo, até o mais imperceptível estremeção, era feito com existência. E esses existentes, que andavam numa roda-viva em torno da árvore, todos esses existentes, não vinham de parte nenhuma e não iam para nenhuma parte. Punham-se repentinamente a existir, e, pouco depois, repentinamente, deixavam de existir: a existência não tem memória; não conserva nada dos desaparecidos - nem sequer uma saudade. Em toda a parte existência, até ao infinito, de mais, sempre e em toda a parte; existência - nunca limitada senão pela existência.

Deixei-me ficar no meu banco, sem resistência, aturdido, confundido por aquela profusão de seres sem origem: de todos os lados eclosões, desabrochamentos; a existência zumbia-me aos ouvidos, a minha própria carne era sensível à sua pressão, e entreabria-se, abandonava-se à germinação universal; era repugnante. “Mas por quê?, Pensei eu, por que tantas existências, já que todas se parecem?” Para que servirão tantas árvores todas semelhantes? Tantas existências falhadas e teimosamente recomeçadas e outra vez falhadas - como os esforços desajeitados dum inseto de pernas para o ar? (Eu era um desses esforços.) Essa abundância não dava uma impressão de generosidade, antes pelo contrário. Parecia abatida, miserável, embaraçada consigo própria. Aquelas árvores, aqueles grandes corpos lúgubres... Pus-me a rir, porque me tinham lembrado de repente as Primaveras formidáveis que vêm descritas nos livros, cheias do estalar dos ramos, do desabrochar dos botões, de eclosões gigantes. Havia imbecis que nos vinham falar da vontade de dominar e da luta pela vida. Nunca teriam, então, olhado para um animal ou para uma árvore? Queriam que eu tomasse por forças jovens e rudes, elevando-se impetuosamente para o céu, aquele plátano com as suas clareiras de pelada, aquele carvalho meio podre? E aquela raiz? Era preciso, certamente, que eu a visse como uma garra voraz, rasgando a terra, arrancando-lhe o alimento...

Impossível ver as coisas dessa maneira. Molezas, fraquezas, sim. As árvores boiavam. Uma elevação pujante para o céu? Antes um abatimento; a cada instante eu esperava ver os troncos engelharem-se como membros cansados, encolherem-se e caírem no chão num monte negro e mole cheio de rugas. Eles não tinham vontade de existir; somente, não tinham outro remédio, era o que era. Por isso é que iam fazendo as suas pequenas traficâncias, discretamente, sem entusiasmo; a seiva ia subindo lentamente pelos veios, contra vontade, e as raízes metendo-se pela terra, pouco a pouco. Mas a cada momento esses troncos pareciam prestes a deitar o jogo abaixo e a resolver-se no nada. Cansados e velhos, continuavam, porém, a existir, de má vontade só porque eram demasiado fracos para morrer, porque a morte não podia dar neles senão vindo do exterior: só as melodias é que podem trazer consigo, orgulhosamente, a sua própria morte, como uma necessidade interna; também as melodias não existem. Todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por encontro imprevisto. Deixei-me ir para trás e, encostado, cerrei as pálpebras. Mas as imagens, logo alvoroçadas, vieram, num salto, encher-me de existências os olhos fechados: a existência, e minha consciência de mim próprio, são uma plenitude e um flagelo indeléveis, incognoscíveis e insondáveis, a verdadeira coisa-em-si imperscrutável. Meu ser é um Hades invisivelmente flamejante, e cada pessoa e coisas existentes são centelhas do absurdo ígneo que denominamos “existir”.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 07/02/2010
Reeditado em 10/02/2010
Código do texto: T2074172
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