Profundamente
Desce a tristonha noite em minha rua
E abraça com o véu negro transparente
A caixa das lembranças suas
Tento lutar em vão e suplico para a lua
Que convença a noite a ser indulgente
E não abrir o fruto da minha amargura
A lua sequer aparece na escuridão
E eu tenho que enfrentar a minha assombração
Vendo ressuscitar lentamente as recordações
Meu quarto imediatamente se transforma
Ganha as cores vivas das cortinas nas janelas
No criado mudo o jarro conversa com as margaridas
A roupa de cama amarrotada cede
E a colcha azul bordada a sucede
Um cheiro delicioso de lavanda recende da sacada
Na sala de estar a luz profusa invade o ambiente
Todos os móveis limpos e organizados
Convidam para um bate-papo envolvente
Na cozinha o retorno do cheiro especial dos temperos
O feijão vermelho de caldo grosso
Casando com o arroz branco soltinho
Dentro do prato de esmalte de sua avó
A carne de panela com o seu toque divino
A salada de tomates e alface
A briga dos meninos
O cachorro latindo no quintal
Roupas secando no varal
Seu Antonio pedindo o martelo emprestado
Dona Rita querendo a velha receita do peru assado
Seu José reclamando do vidro quebrado
- Esse seu filho caçula tem um gênio endiabrado!
A casa respirava vida, barulho e movimento
Agora solitária vive no maior sofrimento
Foram embora todos os filhos
E não mais voltaram
Há cinco anos uma lápide fria
É responsável pelo fim de todos os meus sonhos
Igual a casa envelheço
Tenho a tintura da pele descascada
O alicerce dos meus ossos se enverga
Prenunciando o inevitável desabamento