Viagem rumo à Dinda

Fragmentos

No avião, ida:

O passado me vem neste momento de puro presente _ na saudade de um tempo dos avós. Acho que é porque estou indo ver a Dinda _ levando uma mala de presentes.

No aeroporto de São Paulo, madrugada, uma mulher toca"chorinho" ao piano, me lembrando o piano de mamãe, as músicas que ela tocava e ainda toca. Não sou mais a menina, pelo contrário. Me deixar levar pela música da vida. O chorinho me dá alegria e tristeza.

Viajo sozinha, e quero estar só. Nem olhei para a pessoa ao lado. Vontade de rir. Pareço estranha? Meditei por trinta minutos.

O voo atrazou. Espero não dar trabalho à N. Ela contou que arrumou uma faxineira. C. estará no aeroporto? Encontro com minhas amigas de colégio. Expectativa. Brasil Central, sou do Brasil Central, e voltar para esse lugar mexe comigo.

Quando me vem a angústia me consolo pensando: "Estou nesse mundo, mas não pertenço a ele".

A busca do movimento também nos desenhos que faço, ultimamente. Desenhos de "somagramas". Desejar o movimento. Não me preocupar com o que o o outro pensa é delicioso. Clima de viagem, uma festa. A viagem à Gioânia, um plano realizado. Um vir-a-ser.

O avião desce em Uberlândia. Ficamos no aeroporto. Não tenho vontade nenhuma de ver ninguém daqui, mas me dá vontade ligar para M, hoje à noite ligo para ela, da casa de N..

N. prometeu fazer arroz de piqui para mim. promessa e convite.

Não comer demais, não beber demais. meus sustos, justo eu que tenho fome, escolho a fome, e sofro de desmesura.

Agora passamos por nuvens, trepidou, sensação de passar por quebra molas, sem reduzir a velocidade. No tranco. Prepara para a descida. Respiro e procuro relaxar, tento não segurar o braço da poltrona.

Ontem percebi que é possivel perceber diferentes sensações ao mesmo tempo: estava exasperada e tranquila. Louco, não é? Vi que poderia "escorregar" _ se eu quisesse _ para o destempero. Ri comigo mesmo porque eu "não quis" me destemperar. Vi que podia "segurar" a sensação de tranquilidade, de harmonia. E fiz isso. Quando falei, prestei atenção ao meu tom de voz. Estava brava e contida. Foi bom.

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No aeroporto, em Goiânia:

N. e C. estavam me aguardando.

Que delícia abraça-las. Nos conhecemos desde meninas, conhecemos a carnadura e a alma umas das outras. Agora três mulheres maduras, filhos e netos.

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Almoçamos as três, na casa de N. Peguei a receita do suflê de milho e do frango ao catupiri. Não tinha arroz de piqui. Falamos muito em Jan., nossa querida amiga que morreu tão cedo. Lembramos de seu filho e do marido que deixou viuvo. Jan me escreveu uns dias antes de morrer uma carta alegre, estava feliz e realizada com a maternidade e o casamento. Cheia de planos, e por incrível que pareça, grávida! Morreu de um ataque do coração grávida. Meu Deus.

Contamos de nós umas para as outras. Colocamos o papo em dia, na medida do possível. Dos desencontros. Das dores, das perdas. E também dos momentos bons, e do que temos, o que constrímos.

Agora estou no meu quarto, acordada e sozinha. Estou aqui em Goiás, diferente de estar em casa, com o J.

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Manhã do dia seguinte, N. ainda dorme. Saí para caminhar. Na caminhada percebo meu lado esquerdo leve, e o direito pesado. Ao voltar desenho somagramas. (Somagramas são fotografias de como se está sentindo a si, naquele momento. Um instrumento da Anatomia Emocional).

Voltei para casa, N. está arrumando o café. Ajudo a preparar nossa refeição. Tomamos o café da manhã. Vamos viajar de carro até uma cidadezinha próxima, para ver a Dinda.

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Ao chegarmos, estávamos procurando a rua, quando lemos uma placa na frente de uma casa: "Doceira Hilda".

_ É aqui, quase gritei, só pode haver "uma Hilda" aqui neste lugarejo. nesse buraco de Deus.

Era ali mesmo. Um terreno bom, boa casa com fogão a lenha, jardim e amplo quintal, cheio de árvores frutíferas. Jardim de compotas. Dinda está morando com Hilda, sua sobrinha, filha da Mercês.

Dinda tem o quarto dela, o criado mudo e o guarda roupa da casa da vovó Sinhá. Sua cama tem mosquiteiro.

Dinda, uma sombra pequenina e amada, nos abraçamos longamente. Deito com ela na cama, ela passa a mão nos meus cabelos, e eu choro, enterrando o rosto no braço dela. Quase não mais corpo. Não pergunto a ela se tem medo de morrer.

Almoçamos na Hilda. Dinda falou que Hilda a mima, faz broa de fuba todo dia, na hora do lanche. Li para Dinda a carta de mamãe. Falei para ela que se ficasse três dias seria pouco. De um jeito é verdade, do outro não. Não conseguiria ficar mais do que aquelas horas. Será a última vez que verei minha Dinda nesta vida? A Dinda, uma das pessoas mais antigas para mim, entre nós um grande amor. Fiquei muito grata à N. por ter me acompanhado.

Dinda me falou:

_ Não sei se vamos nos ver mais.

Respondo:

_ Vamos sim. O amor que a gente tem uma pela outra não acaba nunca. Penso na senhora todos os dias.

Ela concordou e respondeu:

_ Eu também, pensar em você é a primeira coisa que faço quando abro os olhos.

Abracei Dinda durante um momento tão longo que durou a eternidade, e pensei: "A vida é uma viagem, a morte uma passagem, a gente só muda de plano".

Dinda sabia que eu sempre quiz ir à Goiás Velha, e me perguntou se eu ia lá. Não tive coragem de contar que eu ia, ela gostaria muito muito de ir comigo, mas não sairia mais daquela cama. Neguei.

Mas me conhecendo como conhece ela sabia sim, eu iria lá, em Goiás Velha. Por que não contei? Fiquei com medo. Tanto medo.

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Reconheci o Erondes, sobrinho da Dinda, e meu amigo de infância, pela perna. Uma meia preta na perna que machucou há tantos e tantos anos. N. ficou impressionada. A filha do Erondes, a Silvia, tirou o útero e teve complicações. A mãe está com ela em Goiânia.

Estamos na estrada, rodando no fusca vermelho de N. , voltando para a casa de N. Conversamos. Tantas pessoas que conhecemos em comum. Tantas pessoas que conheci sem conhecer. N. lembrou-se de um rapaz que gostou de mim e eu nem sabia. A mala em que levei os presentes para Dinda, ficou para N.

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N., minha querida amiga está muito doente. Sintomas sérios, corpo avariado. N. contou que pergunta para si mesma, se é viável. Fico triste. Na casa de Dinda havia um cachorro, olhando para ele, me lembrei de dois cachorrinhos magnéticos que possuí em pequena. Um branco e um preto. O oposto um do outro, e se atraiam, se movimentavam na atração.

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Hoje é o dia do aniversário de minha neta, e estou viajando. Tento falar com ela por telefone, o fone não atendeu. Novamente a impressão de estar em sintonias diferentes: Bem estar/paz/harmonia/riso/amor. E, mal estar. Me sinto culpada por estar nesta viagem. Procuro segurar o bem estar, é tão importante para mim estar aqui! A rachadura em mim se fecha um pouco, e me perdoo ter viajado no aniversário de minha neta.

Dormi mal, uma tempestadae de intensidades. Diferentes percepções, um ponto me doi nas costas. E na alma.

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Estou esperando N. para irmos para Goiás Velha. Novamente poderia resvelar para a insatisfação e impaciência. Me dou conta de como esses dias são intensos para mim. Em mim.

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(_ Bom Jesus dos Passos, São Francisco de Paula, Antolinda.

Nomes soltos em minhas anotações de viagem. Não me lembro mais, hoje estamos em 2010).

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Deixo N. na pousada e vou à igraja. Um padre falou todo o tempo de sofrimento. Minha antiga rebelião volta, e me dou conta do quanto nada tenho a ver com essa mentalidade eclesiástica.

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(_ Marcelo Barro, Veiga Vale, Bartolomeu Bueno da Silva, Anahguera, Diabo Velho, o Caçador de Esmeralda, Ligia Velasques, ampuleta, relógio de sol, ratos, D. Maria).

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Na Igreja de São Francisco de Paula, as duas imagens de santos barrocos, esculpidas por Veiga Vale. Lindas! Bom Jesus dos Passos, e São Francisco de Paula, com uma hóstia no lugar do coração.

As imagens serão transportadas em procissão para uma outra igreja. A Igreja de São Francisco vai ser reformada. Não seguirei a procissão. Sou peregrina solitária, singular.

Os cânticos, as pessoas, as Irmandade de São Francisco, todos vestindo manto roxo de cetim, capuz sobre os ombros, homens e mulheres.

Me sinto na Idade Média. O olhar assustado da mocinha morena a minha frente, de vez em quando resvalando para trás. A velha a minha frente com a menininha no colo. Penso se a velha tem minha idade, ou até mais nova. Parece muito mais velha que eu.

Três padres no altar. Um era um "Don" _ belga?! Outro mais novo sim, belga, com certeza. O terceiro um homem magro, cabelo e barba brancos e compridos.

O "Don" exalta a tristeza do Senhor dos Passos. A via sacra, a paixão de Cristo . Exalta o sofrimento humano. - "É preciso sofrer", ele diz. Imagino que talvez se fustigue com silicio. Me pergunto, fustiga os outros? Agora nos fustiga a todos. Sinto angústia, respiro e penso como é bom meditar no silêncio do meu quarto. O contato direto com Deus, sem mediadores como "o Don", ou quem quer que seja.

A igreja é linda e severa, funebre. Pinturas antigas no teto, as duas imagens que sairão em procissão. Não há bancos, mas cadeiras de palinha pregadas uma a outra com ripas de madeira. Penso que bom ter me libertado da exaltação do sofrimento, do drama. Dos mediadores entre eu e o Deus.

Volto para a pousada pela escadaria de pedra, caminho que Antolinda me ensinou. Cruzo com uma morena jovem, pergunto-lhe a direção da pousada. Ela indica, " Ali na frente". Caminhamos juntas em silêncio, troca de sorrisos, nos despedimos, entro.

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Encontro N. Ela fala muito, percebo o quanto se sente sozinha. Ela conhece o que é solidão. Tem medo que a filha se afaste. Percebo que também tenho medo que minhas filhas se afastem, menos a R.

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No voo de volta para São Paulo, lembranças:

C. quebrou o pé direito. Contou que lembrou do desenho que lhe mostrei (somagrama), do peso que senti em minha perna direita. Ela não estava sentindo nada, ou nem percebeu, e quebrou o pé.

Sua neta Lisa falou:

_ Vovó, você mora nessa casa há tantos anos, e ainda não sabe o lugar dos móveis.

N. contou que C. tem ameaça de trombose na perna direita. A perna direita incha e fica vermelha.

A linguagem somática axistencial é um mistério no qual me inicio. C. não compreendeu quando falei de minhas percepções.

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O cerrado do Triângulo Mineiro é mais trabalhado que o de Gioás. (Vista aérea). Quando falei à Antolinda que sou de Araguari ela contou: "Já foi nosso, o Triângulo". "Sim", respondi, "o Sertão da farinha Podre, de dona Beija". E pensei que minha Minas Gerais não é a do Alferes, mas o pedaço mudado por dona Beija, expulsa de Goiás. De Minas Gerias ela não poderia ser expulsa. Doba Beija, de Araxá.

Os "pés de moleque " de Gioás Velha calçando as ruas, andar de carro neles, zonas de turbulência.

Em Goiânia estive com outra amiga, A. Fui a sua casa sozinha, N. preferiu ficar descansando. A. me recebu com muito carinho. Foi importante para mim ir lá. Estava com medo. Ela com as filhas, me senti querida por ela e as meninas. Tive vontade de ficar mais, e vontade de ir embora.

Encontrei Zé na cama, uma figura bonita _ não é um quadro desagradável de ver. Triste sim, o corpo de Zé está aqui, a alma, a consciência, não mais. Zé assobia. O assobio. Continuo. A dor de toda uma família. O morro dos ventos uivantes.

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"Além do tombo, o coice". A mãe da N., segunda esta, gostava de dizer este adágio.

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Eu e N. na estrada. Dois dias. Senador Canedo e Goiás Velha.

A beleza do Brasil Central, minha terra natal, o cerrado. Paramos num posto e N. aponta para uma mulher. Olhamos para aquela mulher por uns minutos, sem pressa. N. fala:

_ `Tadinha, os dentinhos arreganhados, sempre arreganhados. Não sei porque pobre vive rindo.

Aí, me lembrei foi de meu sorriso, depois que papai morreu. Do meu (eterno) sorriso, fachada atrás da qual me escondia. Meu coração sangrava. .

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Fiquei sabendo um pouco da vida de três amigas: N., C. e A.

Da história das filhas de C., através de N.:

_ Prender muito, e soltar... _ Diz N.

Me remeto à filha que me preocupa neste momento. A filha que agora mais me preocupa (2001). Ela sumiu. Elogiei muito o marido dela?

Me identefiquei com N. quando ela se queixa do distanciamento do netos. Estou quase em São Paulo, e quero ver minha neta hoje.

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Em Goiás me sinto lépida, N. estrumbicada, o joelho doendo muito. Foi muito carinho me levar por onde me levou. Em Goiás Velha andamos de taxi, na maior parte do tempo. Onde o taxi não ia, íamos a pé. O taxi ficava nos esperando, por nossa conta.

N. me levou para conhecer a casa de Bartolomeu Bueno. Dona Maria abriu a porta e nos convidou a entrar; mostrou o quarto de BB, o alçapão, a porta que dá para a varanda, e o rosto do morro. E as janelas com o olho para a rio.

Depois vimos o pátio com o poço, que é um relógio do tempo.

Então, os dois ratos apntaram, de um buraco à direita de onde estávamos. Cada um dos ratos me olhou e saiu, sem a cerimônia de quem é dono do pedaço.

Cochichei para Neila do ratos, e ela:

_ Dona Maria sabe dos ratos.

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A cozinha, as pias com bancada de granito ( atuais, a casa foi mexida por dentro). A mesa e os bancos, no lugar de cadeiras, eu diria "chiques" , como em casa de decoração; observei um lugar à mesa, com um pano de prato foraando o lugar de uma única pessoas, claro, o de dona Maria.

A mesa comprida forrada com emborrachado estampado, fundo escuro para sujar menos. Nas paredes as panelas de alumínio areadinhas, muitas. A limpesa.

Dona Maria nos oferece café, aceitamos. Depois N. me diz:

_ É falta de educação não aceitar.

Sentamos três mulheres à mesa. Dona Maria nos fala da família. Tem cinco filhos. Criou o neto gênio, poliglota, que anda pelo mundo fazendo sucesso, ganhando dinheiro.

Vazilhas de porcelana exibidas, numa armação que parece uma espécie de tablado, alto, na sala de jantar. O neto envia para a avó de todos os lugares do mundo aonde vai. Reconheço um galo português amarelo com crista vermelha.

Estamos naquela casa tomando café. Três mulheres.

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