[O Pacto]

Apodreço na treva desta longa vida, e afirmo, sereno, sereno: o Demônio não existe não. Ouço agora essa música suave

(a "Inacabada", Schubert — coincidência?!) que me apazigua o espírito atormentado, e sei, com mais força e crença, que não, Ele não existe - há só uma, umazinha só, margem para a dúvida!

E embora eu O tenha visto bem ali, às margens do Corgo do Barreirão, naquela passagem difícil, quando o cavalo patinava na grota da subida e, para meu desespero, quase me jogava no chão, eu sei que Ele não existe! O galhos secos da mata quebravam-se atrás do cavalo, o restolho de porta da tapera onde morou aquela velha batia, e batia... e era Ele, era Ele sim! Deitei sobre o pescoço do cavalo, soltei as rédeas, senti o galope no ar... chão mesmo, só vez enquanto. Fugi, fugimos - será que animal também vê o Demônio?! Sei lá... Fugiria de novo. Fugirei no futuro.

E mesmo não existindo, o Demônio, às vezes entra sob o meu couro; sim, couro sim, pois o Demônio não tem a delicadeza de entrar sob a pele não! O Demônio habita com ampla folga o corpo da gente, tem toda a folga para o mal, para loucuras... até para eu amanhecer, bêbado, abraçado a uma mulher feia... feia como as trilhas do inferno! Ou então, me levar a fazer o que eu não quero, conduzir-me para o erro, para o abismo - este impulso, também é Ele; a catervagem na vida é coisa dEle! Pra dormir em lugar alto, é bom trancar as portas, pois de noite, pode ser que Ele venha, e leve a gente para a murada, pra fazer a gente pular de alturas.

O Demônio não existe, sabe-se de alguma certeza. Mas ainda assim, gosto de pensar no Dr. Fausto e no Pacto... “Se eu estiver com lazer num leito de delícias, não me importa morrer...Quero firmar o pacto” - e eu também, eu também! Um pacto, para ter de novo aquele prazer, é coisa de nada, faço correndo! Mas cadê Ele? Cadê o Demônio que não vem, não vem mais? Aquilo do Corgo do Barreirão é coisa de antanho, do tempo do Carrancismo. Assombração não tem mais não. Nem o Demônio. Será? Entra tudo do mundo num só fiapo de dúvida, tudo!

Mas, ah... o meu couro está aberto para Ti, ó Demônio que me levaste àquelas loucuras de prazer! Volta, volta, ó Demônio! Acende em mim aquele teu fogo novamente! Será que não vês... apodreço nesta treva inútil de vida, nesta vida aguarentada!

Vem, Demônio, vem! Eu desço do cavalo, não fugirei; podes derrubar a mata inteira, e a tapera também, que vire escombros! Vem, Demônio, vem! Fui mais justo que Dante, eu Te tratei com maiúsculas, ó Demônio! Portanto, não tardes mais, vem logo!

O Pacto — é só isto?! Eu faço, eu faço!

[Penas do Desterro, às 00h03 de 31 de janeiro de 2010]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 31/01/2010
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T2060796
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