[A Cidade das Dores]

I – A Vocação Negada

Consoante habitualidade dos destinos, a experiência da desgraça e do derrotismo tinha de ser cumprida segundo a praxe da cidade: do ventre intumescido de tantas possibilidades, fui gerado para a curtir sorte dos malnascidos!

Mas para surpresa e frustração da cidade, e por azares que até hoje desconheço, quando dei por mim, vi que eu tinha asas...

Lá, nascemos com uma certa vocação para a infelicidade e para a dor, lá, o muro dos preconceitos, o lugar no mundo definido pela origem, e nunca pela luta contra adversidades, ou pelas escolhas, isolava-nos de terríveis invasores que pudessem remover à luz, as seculares pedras dos costumes!

Lá, ser pobre — quanta ironia! — era vergonha! Até a partida ou a chegada dos ricos podia ser motivo de perigos mortais... Pois no bucólico aeroporto da cidade, em meio ao cerrado cheio de gabirobas, os aviões despertavam a cascavel sonolenta que dormitava na cabeceira da pista; raivosa, ela se vingava da desfeita picando a primeira canela de pobre catador de gabirobas lhe surgisse!

II – Na Porta do Cinema

Chega à cidade um belo cantor famoso; as moças de província se derretem, os machos locais se enfunam; à noite, após o show no cinema, eu passo pela rua, vejo a multidão, e noto um corre-corre, uma agitação; alheio àquela cena, eu paro, e vejo: cercado e amparado, lá vem o cantor; ele olha espantado para a multidão, e do canto da sua boca, escorre um filete de sangue — a brutalidade xucra de interioranos! O olhar de animal ferido do cantor, a violência da turba, o sangue... O asco que senti daquele mundo — Uma fotografia em minha mente!

III – As Almas Acorrentadas

Um circo chega hoje à cidade: desfile pelas ruas, alarido de crianças, um rebuliço na mesmice paralítica, as figuras estapafúrdias, aquela gente errante, afrontando, com a sua liberdade viajora, a inveja dos que não se movem a rogos.

No basalto da rua, tilintam sonoras as pesadas pontas de correntes pendentes das patas dos elefantes; Escuto e olho... Ah, como pesam as correntes desses animais! Mas nem de longe têm elas o peso das que acorrentam as almas de Brejo Alegre!

Menino pobre só entra de embocada no circo, e olha com medo os volteios do trapezista: pois tanta coragem, tamanha ousadia, cria engendrações na cabecinha humilde. Depois que o circo ia embora, no olhar vazio, uma pergunta ficava, o desejo de escapar... de onde teria surgido?!

IV - Briga dos Grandes

Um novo parque de diversões instala-se no velho terreno cinzento onde ficavam as feiras-livres. À noite, desfilam as putinhas serelepes para as rodas de soldados em dia de folga.

Vindos das cabeceiras da cidade, os pipoqueiros de sempre, os tabuleiros de quebra-queixo, os doces de coco, os bolos, e os picolés, tentações que o meu dinheiro da venda de esterco e ferro-velho mal podia comprar!

De repente, verde pra todo o lado! Para a alegria de toda a gente, a vingança: uma turma de soldados do exército cercou e moeu de pancadas a polícia-amarela da cidade, a canalha e serviçal bate-pau dos poderosos! Mas, para sobrar para menino pouco custa — só me vi correndo para escapar de ser pisado em briga de gente grande!

V – No Fundo do Buraco

Na esquina adiante da minha casa, morava uma mulher ossuda, de olhos bem vivos, e cara aciganada, por enormes brincos de argola. Comentário sussurrado: ela "resolve"...

Resolve? Mas resolve o quê? Eu não sabia; e nem me deixavam saber! Sem saber o que é que ela resolvia, meu medo era tanto que eu nem passava no passeio da casa dela... e se ela me visse?! Mas um dia eu soube... e pensei: puxa vida, bem que podia ter sido eu, um daqueles abortados enrolado em trapos e jogado no fundo do buraco da privada!

VI – Animal de Pobre

Na porta da venda, o sob um sol de rachar o carroceiro malvado deixou a eguinha sem comida, sem água, sem sombra.

Com os ossos em tempo de furar o couro judiado, os arreios esfarrapados, as pisaduras cheias de mosquitos, mostram bem o que ela é: coitada, é um animal de pobre!

VII – Curiosidade

Desço a Rua Rodolfo Paixão em desabalada carreira, novamente, quase perco a hora da escola! Mas espera aí... que aglomeração é aquela, na porta da casa da costureira? Paro... ressabio o olhar, não deu pra ver, subo as escadas do jardinzinho e dou com o morto, no meio da sala!

Curiosidade ainda não satisfeita, chego mais perto e pronto — tenho uma imagem para o resto da vida: nas narinas do morto, dois filetes de sangue!

Ah, que nojo! Zuni rua abaixo, e levei vinte anos p'ra voltar a comer carne de vaca!

VIII – A Fábrica

Do alto da esquina, no buraco do muro quebrado eu via os pedaços de sabão, sendo ajeitados nas caixas. Ah, que cheiro ruim! Ruim, mas ruim, por quê? E perto da fábrica de sabão ficava a casa do dono da funerária; impossível não associar uma e outra às tachas ferventes do inferno que era para onde eu seria levado por ter queimado todos os santinhos que achei sob as árvores do Parque!

[... e da velha Minas verte o mundo até hoje!]

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[Penas do Desterro, 11 de abril de 1998]

[publicado à 01h02 de 29/jan/2010]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 29/01/2010
Reeditado em 12/09/2012
Código do texto: T2057273
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