[O Que é um Não-Encontro?]
O homem magro, de boa aparência, caminha pela calçada estreita do viaduto. Tem um grande crachá pendurado no pescoço por uma burocrática fita escura. Já lhe surgiram alguns cabelos brancos, mas caminha a passos firmes, e usa uma calça jeans desbotada. Mas não tem rosto, não tem cara... ou tem uma qualquer cara que nada me diz, portanto, não é. Tem gente assim, sem cara, caminhando pela calçada de um viaduto, ao pino do sol do meio-dia, no verão. Tem sim, eu vi.
Lei de reciprocidade: certamente, ele viu um tipo num carro de cor indefinida, passando pelo viaduto em cuja calçada ele caminhava. Ele até deu pelo tipo no carro, que olhava para ele, sem ver sua cara. Ele também não viu a cara do tipo que ia no carro. Total desinteresse mútuo. E concluiu também que há gente sem cara por aí, acabou de ver um tipo num carro... e sem cara!
Banal, mas registrável: aqui fica um registro desse não-encontro: ambos, ele e eu, sem cara, transitamos pelos nossos mundos, nesse breve instante sobre o viaduto, eu no carro, ele a pé. Eu me lembro da sua figura, ele se lembra da minha figura — ambas, sem cara. Não se desenhou em nossas respectivas mentes a cara de um, e a cara do outro.
Lembro Jorge Luis Borges, "... não há rosto que não esteja por dissolver-se como o rosto de um sonho" — será? O que isto quer dizer, afinal? Os nossos rostos se viram, com certeza, mas num lampejo tão rápido, tão fugaz que já se dissolveram — que alívio que assim seja! — e que nos deixou, mutuamente, sem cara! Se a polícia precisasse de uma descrição de nossos rostos, teria que procurar alhures, não perguntasse a ele, ou a mim — seria inútil!
As pessoas passam a vida a registrar todos os tipos de encontros, a ansiar por encontros, a sonhar encontros impossíveis, até. E os desencontros que rendem tantos poemas?! Mas eu, que cultuo as coisas óbvias, estúrdias, detenho-me a registrar algo que não sei o que é — o que é, afinal, um não-encontro? Isto que acabo de registrar, uma interação em que as pessoas se vêem, mas saem do foco do instante... ambas sem cara?! E o que seria de nós se não dissolvêssemos no nada os tantos rostos que vemos? Loucura? Talvez...
Agora, a desconfortável e aborrecida explosão do óbvio: o que mais nos acontece nesta vida besta são... não-encontros, milhares deles! E com isto, acabo de descobrir que não sou um sujeito sem nenhum talento: tenho sim, talento para o óbvio, para o desútil! Como pode alguém ter-me lido até aqui?! Sou um enganador... também?!
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[Penas do Desterro, 27 de janeiro de 2010]