ABANDONADOS
Abandonar-te agora, a essa altura do sacrifício, seria uma besteira enorme, um ato ridículo que me havia de revestir a alma com as mais impuras camadas de metano, as mais podres. Não, não devo te abandonar, dama da vida. Não. Não. Não?
Ainda não aprendeste que o abandono, muitas vezes é a própria vida em desenvolvimento? Não sabes que do abandono vem-se o abrigo, e que abrigados são aqueles que se encontram nas extremidades, nos pontos mais cantos, desenhados, renegados, ajeitados à forma dos outros. Não hei de te deixar à vontade, sob a vontade dos outros. Abandono-te para que possas conhecer a vida, assim como eu conheci, vida abandonada a um corpo abandonado, fria e seca, contudo, à nossa espera, pra ser manuseada da nossa maneira, sob nossos comandos.
Amor, antes que venha o fim, e consequentemente o abandono final, aquele que nos põe frente a um abismo sem limites, que nos faz ser acompanhado por pessoas, que transforma um momento em momentos e só, eu te darei a retribuição, a migalha que um dia me impuseste tão cruelmente, e provarei do teu mel abandonado, e te direi que os abandonados podem ser os donos do mundo, ao menos para si mesmos, nem que seja por abandono alheio.