.te direi que estou morto de medo.
eu menti, menti, milhares de vezes eu menti.
não sei de quem é essa história. não sei se é uma história sobre um 'eu', um 'você', um 'ele' ou um 'ela'. provavelmente vou escolher três dentre eles e rotacioná-los, porque no fim das contas nem eu aguento saber que essa história é somente minha.
fui encontrado desmaiado, quase morto, na calçada. hm. talvez isso seja exagero. ouvi dizer que estava contorcido e ensanguentado, só que o sangue não era tanto assim, e eu só desmaiei porque estava com medo. hoje penso que essa porra é muito irônica: eu estava praticamente 'morto de medo'.
ele era meu pai. ele, você, eu. seu primeiro pensamento provavelmente foi que ele era um estuprador. não importa, todos somos estupradores. todo mundo pensa que o outro quer sexo, mas ninguém quer. é uma coisa muito pessoal. sexo, amor e o escambal não são pra sempre como você pode pensar que sim. porque, eventualmente, você vai acabar morrendo. eventualmente, você ou eu somos encontrados desmaiados e quase mortos pela secretária de um advogado, de nome amália santos.
você, crescendo na américa ou na europa, ou no topo de uma árvore, pensou que meu pai havia me matado. sabe, os pais dele, seus pais ou meus pais, os pais dele tinham um grande senso de humor para ignorá-lo ao invés de oferecer ajuda. foi meu pai quem sofreu abuso sexual dos onze aos catorze anos sem que ninguém fizesse nada. então, acho que dá pra concluir o quanto você (ou eu, ou ela) sabe. é sério, ninguém sabe de nada de verdade.
eu não gosto do alfabeto. não gosto das letras maiúsculas. não gosto de você, ou talvez não goste de ele ou de ela ou de mim. letras maiúsculas são como nós, e eu não gosto de ninguém. letras maiúsculas são egocêntricas e acreditam que elas (ou nós) merecem atenção. nós (ou eles) gritamos, por favor, por favor me notem, sou importante, juro que sou. letras maiúsculas têm empregos que pagam bem, mas que lentamente as matam; advogados perdem suas almas, astros de rock perdem sua música interior, médicos pensam que podem ajudar alguém. e ninguém, nem uma letra maiúscula, consegue viver se realmente acha que não vale nada.
eu, ou você, ou ele, ou ela, nós estamos todos deitados na calçada, quase mortos e cobertos de sangue e medo.
a secretária faz sinal com as mãos e chama a emergência, dizendo ah meu deus, ah deus, ah deus, como se ela realmente se importasse comigo, e eu estou simplesmente, totalmente...
...morto de medo.