ELOGIO A INGENUIDADE
É que algo me sufoca, minha amiga. Parece um tanto bobo.
Desde que cheguei nesta terra, tão distante d’onde nasci e cresci, nunca retornei a antiga morada. Umas vezes porque o dispêndio insuficiente me impedia a longa viagem, outras porque precisava trabalhar. Três anos sem a família, sinto que mudei bastante.
Agora, estou prestes a passar período razoável com meus parentes. Minha viagem se dará daqui ha uma semana. Estou pensativo. Especulo se a maman não vai se assustar comigo. Como serei recebido? É verdade que me desacostumei dos hábitos familiares: jantar a mesa, hora pra chegar e ouvir barulhos na casa que não os que’u faço, por exemplo. A última vez que jantei a mesa d’uma família foi na residência de uma ex-apaixonada minha, a única, desde que aportei nessa terra.
O gênero humano é curioso, amiga minha. A rapidez das mudanças efetuadas no todo de nossa existência não é percebida lá em sua causa, na lentidão da vida coloquial. As transformações no estilo de pensar e no modo de sentir o mundo nos conduz, inevitavelmente, a constituição de uma identidade própria. Mas a que preço, muitas vezes? Apenas com algum tempo decorrido de vida é que se torna apto um raciocínio mais justo – e também sensível - sobre questões pertinentes a felicidade nossa. Hoje dou muito mais valor a minha família que no passado. Bem como estimo com muito mais ardor o desejo de constituir a minha.
Penso que é importante sonhar. E igualmente necessário empreender a realização deste sonho. Mas, sobretudo, é imperioso sonhar. Sentir o sonho. Penso em tu, minha amiga. Tu deixaste vossa família para conviver com teu esposo. Sabe, isso é lindo! Tanto de sua parte, em ir, quanto da parte dele, em te receber. Sinto-te mais corajosa que muitos homens. Mais mulher que muitas damas da alta sociedade. Especulo como será comigo... O pensamento do casamento para mim é um tanto vago, atualmente. Não é algo que meu coração está, decididamente, preocupado. Acho que seus anseios são outros, talvez mais imediatos e ordinários. Contudo, sinto este sonho desperto em mim: esposa, família e lar. Um dia há de se tornar realidade. Posso parecer ingênuo. Sei de alguns colegas da faculdade que me diriam isso. Contudo, quando tinha 16 anos, ingenuamente imaginava um dia sair de casa, pra realizar aquilo que minha vocação me tendenciava. Recordo que comentava a um e outro irmão ou amigo que viajaria para encontrar outras terras, amar delicadas donzelas e conquistar distintos conhecimentos. Mal era ouvido. Passava por idealista, um terno sonhador. Não sabiam da fé de meu coração. E, entretanto, me encontro aqui nesta terra, longe de casa ha três anos.
Imagino sobre família e lar. E amo os doces fantasmas que este invento produz. Distraem-me, eles. Os contemplo. “A ingenuidade”, diriam alguns, “conduz os homens a escolhas infelizes, facilmente experienciadas depois d’um razoável tempo decorrido.” Esses gostam de ser lembrados de racionalistas. Ainda, tem aqueles que sempre repetem aquela conversa crítico-legalista, argumentando que casamento e família é uma condição necessária para a manutenção da sociedade; que a mulher é uma prostituta da lei e escrava do homem; que este, por sua vez, é joguete do estado e do poder. Estes gostam de ser chamados de alguma coisa tipo “moralistas”. De minha parte, penso que é conveniente estas reflexões num sistema como o nosso, para que o aparato político não se torne mercenário de sua própria ação. Contudo, apenas esse viés não cabe e nem suporta toda minha reflexão, que de certo é ainda incompleta sobre estes assuntos. Tudo bem. Ate pode ser que muitos infelizes de agora, no começo de suas vidas amorosas, embriagados pela beleza da ocasião, tenham apostado ao destino suas felicidades, entregando suas almas ao movimento serpenteado das circunstâncias, que ora pode agradar, mas também surpreender, como cobra que avança as patas d’um cavalo. Também defendo ser muito fortuita a discussão sobre o peso das obrigações que a cultura e a sociedade impõem a família – sobretudo a mulher - tornando-a uma instituição, quase um ministério da moral e da continuação da prole, havendo, por conseqüência desta obrigação, um compreensível desgosto por parte de muitos para com a união estável. Mas meu Deus! Será que não é igualmente uma ilusão acreditar que o poder, o estado, a política e a cultura são capazes de sufocar, ou pior, fazer ser indiferente nossa alma ao sentimento de estar junto daqueles que se ama e que se deseja proteger? Ou seja, seremos mais felizes se não tivermos uma família apenas porque ter uma pode significar sujeição passiva a cultura e a lei? Parece-me uma ilusão e uma lógica quadrada pensarem que o sistema é capaz de sobrepujar a riqueza que os mistérios do coração revelam durante uma vida de cumplicidade d’um casal; a vocação para amar está diluída nas entranhas humana; se alguém não foi feliz nessa empresa, não há segredo, basta estar vivo para acordar pela manhã e também, para amar outra vez. Também não creio naquela falsa previdência racionalista. Sob a condução de específicos interesses, a razão pode se tornar mesquinha ao pé do sentimento; ela é naturalmente limitada, não esqueçamos, como tudo que é positivo e científico. O sentimento é infinito. Assim, raciocinar lá onde se deve sentir, é próprio das almas sem luz.
Pra ser sincero, prefiro acreditar na minha imaginação que horizonta, ainda qu’em forma de vapor, uma vida de casado feliz e gostosa. Pois a opulência da alma humana, através de suas sugestões e intuições, é melhor bem vinda que as sistêmicas críticas de cultura. Se nem só de sonhos pode viver uma pessoa, é igualmente verdadeiro que nem apenas de “realismos” podem ser feliz. A família não é somente um ente institucional que serve de condição de possibilidade para a manutenção da sociedade civil e de direito. Antes do código civil, há o sentimento, o olhar, o toque, o cheiro; há a vida! Penso que é importante sonhar. Também necessário agir, como tu fez, para conviver vosso esposo, minha amiga. E sei que para as mulheres, se comportar com tal 'independência' pode ser desconfortável. A sociedade julga, a final, muitas vezes com pressupostos hipócritas. Não raramente as mulheres têm que responder e vencer as tradições, para serem realmente felizes.
Irei para junto de minha maman por uns meses. Retornar para o ambiente onde embrionei o futuro que agora respiro me será reconfortante. Não sei como me sentirei. Esta incógnita me atrai. Lá, quero enternecer ainda mais meu sonho de família. Renovar os valores do coração. Pensar em alguém especial naquele ambiente será como fazer tocar dois mundos completamente distintos, e eu serei a síntese deste encontro. Não ha um dia que eu não pense em suas palavras, minha amiga. Realmente, o que me evitou de ser indiferente aos meus sonhos, por mais idealistas que parecessem ser, foi apenas um detalhe, talvez, um capricho que a natureza pôs em mim: ingenuidade. Esta, quando assumida em sua essência cândida, é fonte onde bebe o coração da coragem necessária para empreender labutas a realização do sonho querido.
Leia mais em http://blogs.abril.com.br/poemasvalentulus