SETE COLHERES DE AÇÚCAR

Minha amiga, no começo d’uma madrugada que se passou, ocorreu-me uma experiência. Destas causadas por sensações repentinas e entusiasmadas, justamente isso que acredito ser tão raro suceder em nossos dias, no trânsito da vida coloquial. Pois eu estava a trabalhar como garçom, desempenhando aqui e ali a entrega dos pedidos e anotando as solicitações dos clientes. Transitava desde o lado de dentro da lanchonete ate a calçada do estabelecimento, onde havia muitas mesas. Preocupava-me em ser muito compenetrado e atencioso porque, em verdade, detesto ambientes barulhentos e lotados; tanto o é que tendo a escapar destas atmosferas através de mil e um artifícios da imaginação, a fim de distraír-me. Mas não era o caso de me permitir qualquer distração ali. Então, dividia minha atenção entre policiar-me de mim, para manter o foco nos clientes e, para não me afastar, através de meus pensamentos, daquela barulheira tumultuada; mesmo porque precisava realmente da grana que me pagariam.

De certo eu estava convencido de que desempenhava um bom trabalho, pois ate comecei a gostar da tarefa. Não do emprego de garçom, mas em estar satisfeito por contemplar a feliz maneira como eu lidava com o desconforto do barulho, transparecendo calma e serenidade aos demais. De certo, eu recheava essa atuação com uma elegância quase prussiana. Houve clientes, inclusive, que perceberam se tratar eu de um empregado novato para aquela lida. Disse-me um que’u não era um “cavalo” como os outros garçons. Um dos colegas barmens, experiente na casa, ouviu esse elogio a mim e se “mordeu”, como dizem aqui por estas bandas do sul para designar alguma insatisfação, o que nesse caso, me parece ser inveja. Ao final, quando este ou aquele cliente se satisfazia dos serviços que lhe prestara, muitos me agradeciam a sensibilidade, me dando ainda generosas gorjetas. E houve um ou outro caso em que algumas graciosas damas, encantadas pelo atendimento (e excitadas pelo excesso de cerveja), me felicitavam com guardanapos, tendo escritos neles seus números de telefones... Certamente há bens mais valiosos que o dinheiro na vida!

E era assim, neste estado de espírito e de tarefas, que’u me encontrava quando, muito devagar e timidamente, se aproximou um velho. Ele era alto, tanto que suas costas inclinavam a frente. Tinha longa cabeleira branca e lisa ate os ombros. Assim também era sua barba, muito alva, chegava próximo do meio do pescoço. Vestia camisa marrom e calça cinza, bem surradinhas. Tratava-se de um morador de rua. Antes dele já haviam aparecido outros sem-tetos, que atormentavam os clientes pedindo desesperadamente - algumas vezes com agressividade - algo para comer ou beber. Os garçons corriam lá para espantá-los. Me lembro que no começo da noite surgiram tantas crianças negras, pobres e sujas pedindo comida que, sinceramente, especulei se havia acontecido alguma rebelião na FEBEM ou orfanato. Mas diferente destes casos, aquele velho não se aproximou de nenhuma mesa. Não fitou cliente algum. Não resmungou qualquer palavra. Apenas veio diretamente a mim, devagar, com seus olhos de um azul apagado a me fixar.

Em verdade, já me acostumara a danar com os baixotes negros que iam lá conseguir esmolas e comidas. No começo era constrangedor. Ate mesmo alguns moços e moças que pediam dinheiro, sabidamente para comprar alguma branca, eu havia aprendido a “endurecer” com eles. Assim, minha reação a qualquer destes tipos de humanos que apareciam na lanchonete era de correr com eles da li. Fazia isso com um pouco de remorso, mas havia recebido ordens para assim proceder. No entanto e no caso daquele velho?

Logo de início fiquei desconcertado. Pois ao notar a aproximação dele, com suas vestes prá lá de inapropriadas para aquele ambiente em que nos encontrávamos, já ia a lhe dizer que saísse, esperando alguma reação de resistência dele, como muitas vezes acontece em que algum desgraçado teima em ficar. O velho, contudo, se aproximou muito calmo. Seu olhar se jogava a mim tão diretamente que me senti desarmado de qualquer ofensiva que viesse a realizar. Aquele olhar estava cansado. Transparecia nele um espírito abatido por algum sofrimento pessoal apenas compreendido por homens e mulheres que muito padeceram. Também apreendi uma indiferença serena ao resto do mundo, um marasmo e desinteresse sobre o conceito das outras pessoas a sua condição. Um desencanto pelo canto das vozes. E era curiosa a impressão que senti quanto à segurança e soberania que aquele espírito tinha de si mesmo. Sua ataraxia poderia fazer inveja aos alunos e professores da escola de yoga que ficava logo em frente à lanchonete. Ao mesmo tempo seu rosto era singularmente irônico. Parecia desdenhar, silenciosamente, de todos nós: quem é miserável aqui, eu ou suas almas sufocadas pela falta de sentido? E por isso estive desconcertado. E tendo ele se aproximado e para mim olhado, apenas fiquei parado, observando-o, realizando toda uma jornada subjetiva de especulações sobre a natureza daquele olhar. Não estava mais ali aquele “eu” que se admirava por não se permitir de introspecções na hora do trabalho. A final, foi preciso que o próprio velho me dissesse alguma palavra para qu’eu me despertasse. “Eu queria um cafezinho”. Primeiramente eu apenas ouvi, “hãm?”, murmurei pra disfarçar, pois não havia escutado. “Eu queria um cafezinho”, repetiu. E antes que eu pensasse que ele estava apenas pedindo um agrado gratuito, ele logo movimentou sua grande mão e me entregou uma cédula de R$ 2,00.

Sua voz era rouca, mas segura. Peguei a nota. Olhei pra ele outra vez: seu olhar tranqüilo a me visar, muito formidável. Mergulhado naquela cena, longe de qualquer intento negativo de não realizar sua solicitação e, mais do que havia feito para qualquer outro cliente que houvera pagado uma quantia bem maior sobre aquilo que consumira, imediatamente me pus a preparar o café do velho. Me senti tão honestamente disposto a simplesmente ter que fazer o café que caprichei demais: num copo grande e coado com bastante pó, bem quente. Enquanto preparava o café, houve um momento em que tive de segurar umas lágrimas que inesperadamente queriam jorrar por sobre a face. Me perguntava porque da emoção e, sem saber nem por onde começar a responder, fiquei tenso e notei que minhas mãos tremiam. Pra minha sorte, me veio na mente que meu cliente me aguardava. Precisava ser ligeiro. Terminei o preparo do café. Caminhei ate o velho. Ele aguardou que’u me aproximasse. Ao pegar o copo cheio, ele me olhou novamente. Eu também olhei. Pensava que ele iria me dizer alguma coisa. Queria escutá-lo, não importando o que o patrão ou o que algum cliente pensasse. O olhava bem. Ele era muito alto. Eu dava-lhe na altura dos ombros, apenas. Passado algum tempo, ele finalmente ia falar. O que eu queria dele? Ainda me faço essa pergunta. Talvez naquele instante eu estivesse querendo acreditar que estava diante de um Diógenes do século XXI, para eu, o garçom daquele momento, ser o Alexandre que lhe tapava seu sol. Quem sabe ele me diria algo semelhante ao que o antigo filósofo disse ao conquistador do mundo?! Então, finalmente se pôs a falar o velho, e não foi em nada parecido com aquilo que ouvira o guerreiro macedônico. “Você esqueceu o açúcar, filho”.

Senti que minha própria alma estava estancada naquele minuto. Juro-te, minha amiga, que tive vontade de me auto-flagelar. “Não acredito que me esqueci do açúcar! Maldição!”, repetia-me em pensamentos. Corrigi meu erro e lhe alcancei o que faltava. Sem pressa, ele colocou sete colheres de açúcar no copo. Misturou com delicadeza. Então, o velho sorrindo e outra vez me olhando diretamente, agradeceu humilde meu trabalho, virou-e e foi caminhando tranqüilo pela calçada, ate sumir na parte escura do fim da rua. Isso aconteceu por volta das hs 2:30 da manhã do ultimo natal.

Tive ímpetos de querer saber daquele velho. Quase, eu digo, quase fui atrás dele. Mas me contive. Lancei meu olhar para as mesas em meu redor. Algum cliente poderia estar precisando d’um garçom, como deveras estava. Porem, eu apenas disfarçava profissionalismo naquele momento. Estava impressionado demais com o idoso morador de rua que conservava algo de nobre em sua atitude. Se antes eu me sentia satisfeito por contemplar a feliz maneira como lidava com o desconforto do barulho, transparecendo calma e serenidade, agora eu conjecturava fortemente o gênero humano. Se antes houve clientes que me agradeceram a sensibilidade, agora, não suportaram mais minha desatenção e desprendimento e por fim, perdendo a paciência, berraram para que eu os também olhassem. “Garçom!”

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Valêntulus
Enviado por Valêntulus em 05/01/2010
Código do texto: T2011869
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