O ALÍVIO DE GIOVANNA

Desligue a TV e aumenta o silêncio. Troque de canal e sintonize o sentimento. Você está tão cansada, e já faz tanto tempo...

Você cresceu e andou por aí. Libertou sorrisos, esfriou cinzas e

pichou no Muro de Berlim. Sempre tão atrevida! Nem Hannah Arendt era assim.

Na queda das Torres e das torres de marfim; no crack de ’29 e no

retorno de Gagarin; era em dança no asfalto que você bailava entre

carros e atropelados.

Na crise da razão e as sombras de Hiroxima; na invasão da

Normandia e na retomada de París; e quando o Titanic afundou, foi

outra vez você quem consolou um triste Deus.

Na praça da morte tu viu a morte do fim. No Woodstock neoliberal

você não participou do prazer das mentiras; e enquanto Israel

bombardeava Gaza, suas mãos construíam praças na Palestina.

Em ’64 você lutou. E em ’85 venceu! Um país amamentou e deu

água pro sertão. Ao ressuscitar a poesia, Lênin lhe sorriu no mausoléu.

Quando a sétima trombeta tocou você ateou Vivaldi ao violino.

No tratado de Versalhes, você chorou enquanto tomava café na

Checkpoint Charlie. Na invenção da imprensa, há muito já era a

liberdade.

Quando a República do Pampa calhou, Catarina lhe chamou de

Santa; quando a noite caia das clandestinas alturas, tu a segurou no

colo; quando Roger Walters fez o televisor voar pela janela, seu beijo

desmoronou The Wall ; se Gessinger sobreviveu a queda da chuva num

dilúvio sem alívio, foi porque você lhe apresentou Anna; e quando Deus

se arrependeu de ter feito do homem um solitário e, por isso, aprimorou

sua criação, “eis a mulher”, tu foi a primeira...

Em todas as ocasiões, em cada segundo da história, foi sempre tu,

filosofia, guerreira menina, Giovanna querida, que sob a lua fúlgida, surgiu-se em sonhos. Soube ser serena na peleia entre os viventes, para além da sorte e do acaso. Mais forte que a fraqueza ou fracasso, mais mulher que qualquer líder de revolução sensual. Semeando vidas sob um tapete de cadáveres dos discursos neo-liberal, sua alma foi

importante para todos, embora nem todos tenham sido importantes aos

teus pés. Alguns que morreram pela tua mão. Houve quem tentasse te

entristecer com sofismas.

Mas agora feche as janelas. Desligue a TV. Eu faço o jantar. Qual

sua canção preferida? Vamos dançar essa noite. Você ‘inda guarda o

vinho de Belgrado? Foi aquele velho imigrante da Bavária que lhe deu,

lembra? Beba-o enquanto lhe canto poesia, essa tua irmã tão querida!

A outra mana sua já ta chegando; olha só, lá vem ela, é a música!

“Bésame, bésame mucho! Como se fuera esta noche la ultima vez”.

Descanse, lhe imploro, minha mocinha. Deite aqui nesses tecidos

tão suaves quanto tua pele. Você é a única que jamais cessou de

trabalhar. Esqueça aquele bonito inferno lá fora. Não lhe é impossível

ser frágil: uma mulher. Não digo nenhuma mentira, tu sabes; não faz

sentido ficar mentindo! Assim você me ensinou, lembra?

Aumente o silêncio. Nenhum governo está lhe caçando. Os

inimigos desapareceram. As estátuas de sal não existem mais. Há

milhões de fotografias iguais, mas, eu não sou mais uma.

Permaneça sozinha comigo. Povoe nossa solidão. Você que

sozinha esteve na multidão da história por dois mil anos... Morrendo e

revivendo, como rosas no deserto. Sempre foi a esperança dessa

civilização de agonia. Velho mundo, novo mundo, ancien regime e tudo

o mais! Me entregue estes destinos, estas vocações que lhe consomem.

Apenas esta noite, descanse os olhos. Aceite suas mãos tremerem, bem femininas, ao tato do corpo meu.

(...)

Desligada a TV! Sinta-me em silêncio. Escuto sua respiração. Que

tal uma alma em seu ventre? Daremos a ela o nome “Vitória”. Você não

quer mais esperar seu futuro... E eu... Lhe anseio há tanto tempo!

Valêntulus
Enviado por Valêntulus em 01/01/2010
Reeditado em 01/01/2010
Código do texto: T2005418
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