PORTÃO DE GRADE

Portão de grade. Um anteparo com metades. A primeira era um quadro. Via-se um cesto de lixo, tipicamente bairrista, sem lixo. Formações vegetais esparsas de espécies aleatórias, dispostas num espaço quadrado de terra. E um jornal estranhamente amassado e estranhamente posicionado. Do quadro que se formava, podia-se ler em letras garrafantes a idéia seguinte: Mudança de Vida.

- Jornais de rua!, debochei, não sem lamentações correlatas no ar decepcionante que saia desabafado dos meus pulmões.

Tudo do lado de fora. O pedaço de terra quadrado ficava no meio, entre o cesto de lixo bairrista e o jornal de rua. Atrás do pedaço de terra, confundindo-se entre a vegetação indeterminável, gavetas empilhadas encostadas no muro da casa da calçada da frente, compondo um legítimo pano de fundo. Era o enquadramento que todo fotógrafo sonhava, comecei a julgar com minhas considerações particulares sobre o olhar humano. Procurei inclusive me abaixar e me aproximar do portão, procurando entender como se formava aquela foto. O cesto, a terra e o jornal. Gavetas no fundo enriqueciam o quadro. Mudança de vida, quase um deboche pessoal.

Ali dentro eu realizava um dos poucos vícios que empreendo quando retorno à casa dos meus pais, procurando algum tipo de descanso da vida real, já que ainda tenho a oportunidade de fazer isso. Fumava um único cigarro diário e observava aquele portão de grade, quase em contemplação artística da realidade, o que naturalmente já me pasmava, pois sempre fui um exemplar tipo estarrecido. Fumar apenas um cigarro por dia, na casa dos meus pais só podia comportar um motivo: lembrar-me de que existo em outros lugares além daqui, e que em breve retornarei para, com o perdão da expressão, a minha vida, feita de muitos cigarros fumados por muitos motivos. Evitei resumir minha história de vida, como parte dos meus parentes resumiu, na vivência de compromissos familiares, sempre devendo algo à geração anterior, aliada a ascensão financeira, ou não. Estabeleci desde sempre este “ou não”, que meus pais sempre julgaram como algum tipo de revolta característica da idade. Hoje sei que estabeleci isso dessa forma, observando a superficialidade do julgamento dos meus pais, na medida em que esse “ou não”, vem deixando de ser uma postura de aversão irracional a qualquer conformidade, estruturando-se cada vez mais como uma agonia de viver. A verdade é sofrida pra mim, que não vivo sob os valores da minha época, e não tenho força o suficiente para romper com qualquer valor, sem que haja uma necessidade vital neste rompimento.

O interior dos estados brasileiros, e as suas cidades absurdas (sendo as do meu conhecimento algumas do estado de São Paulo), produzem jovens cada vez mais assustadores, portadores de seqüelas culturais drásticas, formadoras das suas personalidades nas acepções mais profundas, e isso deve acontecer desde 1985, acredito. Lembro-me de pouco divertimento em grupo, seja familiar ou escolar, que possa considerar rico, numa abordagem inicial. Utiliza-se dos meios mais desconexos para se alcançar relaxamento. Passear em supermercados ou locais de amplo consumo com a família, já que boa parte da economia da minha cidade sempre foi devida ao comércio, inclui muito dos momentos em que vi mais de cinco membros da família juntos. Observar as iluminações decorativas do Natal, nas casas grandes de bairros como o Jardim Europa, Jardim América ou Estoril, também era uma grande atração, à julgar pela freqüência anual assídua destes empreendimentos. Ah, que memórias vazias de mim as minhas.

Nestes momentos eu nunca estive com a minha família de fato. Não enganar-se então com a presença física de ninguém, presença física não existe, presença física é a presença de um morto, com a cara afundada na tristeza em movimento que oferece uma janela. Estive sempre envolvido em alguma experiência fotográfica como esta. Um clima refrescado que é diferente do interior da minha casa, um agradável (por ser o único) cigarro para fumar, e alguns instantes de observação atenta, meus deleites solo. Coloquei-me de cócoras para observar em silêncio a fotografia que inventei de pensar. O meu pensamento sem espaço pra memória, “mudança de vida”... sim, do lado de fora, ao que parece. A noite cimentada da calçada derretendo-se. Eu preciso seriamente chegar em algum lugar à partir destes próximos instantes. Chegar como quem, é o que me pergunto. De certo não como o profissional que me imaginava, ou o amante que eu preparava para eu mesmo interpretar, ou toda a interpretação que foi se desviando de algum caminho nestes últimos anos. Naturalmente eu entendo que as coisas desviem do seu caminho, como tudo o que é vivo que pulsa, seja o meu coração ou a minha vontade contida, expandindo-se e contraindo-se. Mas eu falo que estes últimos anos pelos quais passei, contemplaram-me com verdadeiras couraças reichianas, à julgar o pensamento através da evolução da modernidade. Possivelmente, estes segundos que são acompanhados pelos seus olhos, olhos de quem lê poesia, são os instantes precedentes à metamorfose de Gregor Samsa, se assim posso inserir a simbologia das minhas re-leituras em meu processo reflexivo. Ninguém sendo sou eu, inventando a foto da mudança de vida sugerida pelo jornal de rua. E quem é, pergunta-me o gato, enquanto desaparece. Não o gato vem depois.

Agora eu vejo que a terra é fraca e não compete, definitivamente não compete (definitivamente não, mas definitoriamente, se assim pode ser colocado o definitório deste instante, indefinitivo), não está à par da força que penetra a raiz. Como as calçadas que se levantavam, formando rachaduras por sobre as raízes de uma antiga árvore, compondo um antigo deleite, e um dos poucos, desfrutáveis no território da minha faculdade. Meu enraizamento, o enraizamento de Kazuo Ono, os braços de Pina Bausch. A peruca branca de Andy Warhol. Vejam, não há hipóteses? Minha terra de origem e minha coisa de raiz, são impressões que gradativamente vão se tornando incompatíveis. Risíveis, à final de contas, estou observando o portão da minha casa, a minha rua sem graça, que consegue ser silenciosa e ruidosa, tão intensamente quanto o incômodo dos insetos calorentos.

Não é o caso de um animal enjaulado, absolutamente. Eu já estive nas grandes épocas impressionistas, em seus grandes vernissages. É fato, eu já tive a impressão disso tudo, que culminou na grande depauperação fragmentista, impugnada no nome e nas vestes do pensamento modernista. Não é hora para pensar nisso. Os sons que eu ouvia, que compunham a sonoridade da imagem, eram emitidos por pássaros, filhotes agora. Certamente instalados com seu ninho dentro do forro de casa, em alguma viga da garagem. Embaixo da madrugada, era o silêncio. Ou a quase madrugada dos pássaros. Eu refletia alguma luz pra quem me visse de alguma lua, disso não me restava a menor dúvida. E eles ainda não eram também animais enjaulados. Agonizavam também, mas não é hora de pensar nisso, acredito que não.

Já ficava tempo demais naquela área da casa, isso certamente devia aborrecer os meus pais. Não gostam que eu fume, não gostam que eu fume nunca, não gostam que eu fume tanto. Eu também não gosto. Mas gostam que eu esteja aqui. Eu também gosto. Sabendo que isso dura pouco, e que semanas antes de partir, já sinto a necessidade vital de partir. O que é de impossível retorno, não é a totalidade de uma vida decorrida, mas aquilo que a impressão não comporta como essência. Não é hora de uma despedida também, vamos deleitar algumas palavras nômades, regateio da pele dos quadris, fogo na figuração. Falta-me ainda observar o que ocorre pela outra metade do portão, algo de suma importância na organização desta literalidade, não é isso?

Bem, era uma metade fechada. Poucas aberturas à visão. Acontecia de quase sempre a mesma coisa. Passando por todos os acontecimentos do mundo, os mais interessantes não passam por aquela. Ali, o outro lado, morava a cegueira da intuição, com quase toda a certeza é que digo. Impregnava naquela outra metade do portão de grade o ímpeto raso, a cômoda vida fogosa dos recém casados recém mudados vizinhos novos, a coisa do mundo que se sabe bem em cidades do interior. Viver metonímico, da parte pelo todo. É o que a outra metade revelava, através do que velava. E isso não é algo que ocorrerá para sempre, porque são vivas correntes. Talvez se abra num momento ou outro, de vaga determinação. Não cabe a mim. Mas sei.

No entanto acautelo, que foi essa a grande lição deste ano. Ano que me obrigou a dividir a vida em anos, como provavelmente foi 2005, e certamente serão outros anos desta geração que amadureço. Não, não somos uma geração, não é isso. Aprendi o acautelamento em estar sempre tão inteiro nos lugares, com as feridas tão expostas aos ambientes mais diversos, desconsiderando toda a orientação da assepsia. Acautelo pinçadelas prazerosas, do prazer dos pedaços que ela mostrava, que vão fazendo pinceladas de falta, prosseguindo sufragando à vida, como é o que parece ser. Se o caso é mais claridade, é preciso mais lucidez, nas veias que esvaem as vidas contidas nas garrafas de vinho. É o que parece ser, como o símbolo da vida paralisado, momentaneamente.

Foi quando passou um gato de duas cores, observou minhas vestes como quem encara Alice de Lewis Carrol, fingiu então estar atônito comigo, abriu um largo sorriso, começou a cantar e a desaparecer:

- Por acaso eu existo, você está mesmo me vendo

Calma, calma, dorme, dorme, há um final,

É certo que há.

Agora é.