Eu me calo e as palavras transbordam outras formas, de qualquer modo esvaem-se de mim, incontidas, incontroláveis. Eu me calo diante da inutilidade de meus dias e de minha parca e pobre história, tão mal contada, mal vivida, mal começada e mal acabada. Eu me calo e o que sobra é somente esse tão conhecido silêncio. E o que mais eu queria? Talvez mais silêncio.
Ah! Essa brincadeira de viver. Não dá mais para brincar, saio da brincadeira, carrancudo e aborrecido. Todo mundo se diverte, menos eu. Todo mundo tem brinquedo e eu tenho que inventar brinquedos e brincadeiras na fantasia. Meu único brinquedo é a imaginação. Meu único alento e esperança, minha fuga e minha ilusão. Minha mais garantida alienação. Eu tinha um milhão de outras coisas práticas para fazer exatamente agora, mas estou aqui à mercê da imaginação, criando um mundo que sei que nunca vai existir a não ser em minha mente, um mundo que vai se realizar apenas em mim.
E meus devaneios encontram sempre devaneios companheiros e eles bebem e se divertem, se iludem e se aniquilam, num extermínio necessário e inevitável. Minha tristeza está sempre a dançar com outra tristeza, ou a passear todas essas madrugadas solitárias, onde tudo o que tenho é apenas mais silêncio, absoluto como o tempo, inescapável como parece ser a realidade.
E eu não ouvia quem gritava ao meu lado, nunca. Por preferir sempre a letra fria, a escrita despojada e despejada de emoções. Estou acostumado a ouvir o silêncio e os sons não fazem muito sentido. Se falam comigo meus olhos procuram olhos numa forma de contato entre almas, sons e palavras interiores, pensamentos e sentimentos. Para mim, tudo o que está fora vale menos do que tudo o que está dentro.
Então eu me calo, meu amigo, porque estou cansado de minhas palavras e de meus pensamentos, desse retrato meu pendurado todo dia nesse espelho que não está fora, mas dentro de mim. Cansado desse eu que não anda, não corre, não busca, não quer, só aceita o que der e vier, o que me dão, o que me sobra, o que nem preciso.
Eu vejo o amor fazer das suas por todos os lados, minha companheira de batalha. E de que adiantam agora nossas espadas, se essa luta de morte não se faz com essas armas? E com que armas se farão? Eu risco cinco ou seis nomes da minha vida e de repente não tenho amor nenhum. Você não risca apenas um e não tem amor nenhum. De que somos feitos, de alguma espécie de maldição? Filhos da noite, netos do silêncio. Criaturas de um mundo que subsiste ao lado desse sem que se perceba. Quantos mundos criamos e destruímos sem que escapemos desses dois eventos cruciais da vida, o nascimento e a morte? O que vai te fazer desistir para que eu aprenda a desistir também e viver apenas com essa visão de corpos sem vida numa batalha insana por manter-se vivo? Por que continuamos, se o que nos aguarda é o nada de nada de nada?
Já se perguntou sobre o que falar, meu amigo? E sobre o que calar? Nunca ninguém perguntou o que cala em si mesmo. E agora nem sei, porque silêncio e esquecimento andam juntos e eu os sigo a esmo para o mais ermo de mim mesmo. E o mais ermo de mim mesmo fica aqui tão próximo e eu não sei onde é.
Só não se cala uma certa poesia em mim. Incipiente. E insipiente. E eu vou aprendendo com ela exatamente o que ela não ensina. Mas sim o que arranco dela, o que dela se perde para mim, o que dela escapa e não me escapa nessa acuidade ávida e necessária. Eu aprendo o que ela não me diz porque é o que ouço dela.
Mas eu me disfarço e tudo o que viram de mim até aqui sempre foi um arremedo de mim. Nunca quiseram e nem vão querer a verdade, sobre nada e sobre ninguém. Nunca vão querer nada além de mentiras confortáveis e sorrisos postiços em olhares castos. Ninguém cuida do monstro que cria, mas o expõe no monte ao bel prazer de deuses mitológicos, escatológicos, e demônios devoradores de almas.
Eu fui exposto e alimentado pelo orvalho da noite, nutrido pela luz das estrelas e embalado pelas canções das Musas. Fui protegido pelo seio da terra, criado no oco das árvores, escondido em densas florestas. E nunca vi meu próprio rosto. Mas somente essas máscaras que me escondem a realidade. Como essas palavras que me escondem a verdade.
Como essa verdade que me esconde a vida.
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 08/12/2009
Reeditado em 28/08/2021
Código do texto: T1967887
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.