[A Verdade é Raiz de Dois]
Simples registro de viagem. Passavam uns minutos das duas horas da manhã, quando cheguei... Voltei de um território perdido no espaço-tempo. Tudo tão nítido, tão nítido que ainda estou a me recuperar das visões, dos sons, das cores... nem dou conta de falar tudo!
Choveu forte lá.
O estrondo das águas nas pedras da cachoeirinha logo após o pesado aguaceiro. As enxurradas correndo pelos trieiros sinuosos que o gado faz nas invernadas. Por sobre o mundo surgido da tempestade, o sol, o ouro do sol caindo, lambilento, sobre as coisas. O verde ainda mais verde do capim, e das copas das árvores. O canto alegre do joão-de-barro celebrando a estiagem. O piado langoroso dos anus brancos. O meu olhar levado à distâncias infinitas pelo canto do pássaro-preto. A farra das maritacas no galhos mais altos da paineira. Sob as árvores do quintal, as frutas derrubadas pela tempestade. Montões de folhas, galhos quebrados... mas logo a Natureza conserta tudo: muda do que era, para o que agora é, e pronto! E nos raios dos sol coados por entre as árvores, vejo marimbondos voando sobre a casa derrubada no chão... o que fazer... a casinha deles destruída, não vai servir mais... e o pior é que vem mais chuva, a três-potes está piando lá longe no brejo dos fundos do quintal. Não sei não... se esses marimbondos se salvam! Na cozinha, acabam de coar um café; tem pão-de-queijo, biscoito de polvilho, manteiga amarelinha... huumm... esqueço os marimbondos sem casa, hão de dar um jeito, e corro lá! A chuva passou, trovoada ribomba longe, bem longe da Barreirão!
Pois é... e aqueles marimbondos... salvam-se? Não sei não é se me salvo eu de uma viagem assim! Olha que foi duro, foi duro mesmo... fiquei ali, no quarto escuro, sentado num banquinho, apalpando-me, refazendo-me, juntando idéia ao lado de idéia, a lucidez (que lucidez??) voltando como se... ah, nem sei! Parece que fui mesmo até àquele ponto do universo em que o mundo da Fazenda Barreirão está vigente, tal como era quando abri os olhos da captação das coisas.
E depois, fiquei pensando... se eu tivesse morrido sem acordar, aquele mundo teria se afastado do planeta Terra para a vastidão do esquecimento. O esquecimento verte, sim, verte coisas para o Nada. Simples assim! Aquele mundo é só meu. Aqui, contei uma parte, só uma parte dele, porque tudo, tudinho mesmo, ninguém consegue contar. Se tentar, a gente falseia, a verdade nunca é inteira como o um, o dois, o três... a verdade é raiz de 2 — um que conta, outro que escuta — logo, é sempre inexata! Será? Só os loucos afirmam coisas, só os loucos! Das coisas, o tudo não existe. Existem partes... ainda bem!
[Penas do Desterro, 07 de dezembro de 2009]