SOLIDÃO E PSICANÁLISE
SOLIDÃO E PSICANÁLISE
Uma música incidental invade os aposentos, contrariando a lúdica performance deste sábado. Do lado, uma saleta meio escura fortalece meu interior nublado por conta do tempo de partir. Partir é sempre doloroso porque implica romper, dilacerar, ruir um pouco do nosso interior. Certamente que não há "parto" sem dor, mas esta não se acostuma em si e cada retaliação é como se fosse a primeira.
Os móveis da sala estão sem uso, porque no chão me busco como se em cada quadrado da cerâmica eu pudesse encontrar retalhos de mim, enquanto me reconstruo do que fiz equivocado, ou mesmo errado, talvez certo por presunção.
A viagem do pensamento aporta vários tons do meu arco-íris em desapego, sentindo no ato de viajar entre egos e superegos o destino dos inconformados com o sossego. Imagino que isto só se alcance com a morte, mas ao mesmo tempo não concebo essa "passagem" como sustentação das nossas esperanças de quietude.
Da janela deste apartamento se descortinam imagens que seguem os passantes como que querendo saber deles seus destinos e desatinos. Como que querendo chancelar os meus altos e baixos pela realidade deles no frêmito lufa-lufa da vida por ela própria.
Penso, por momentos, no trajeto que a gente faz pra não fazer da vida um "trem" descarrilado da realidade concreta que nos colocaram como absoluta desde criança. A idéia é a de que não podemos deixar de nos refazer sempre se quisermos continuar o mesmo. Como diriam outros, de nos repaginar em cada dia. E nesse desencadear de versões atualizadas de nós, construirmos o melhor de todos os poemas de amor: uma ode a vida por ela mesma e sem sofismas. Talvez o poema que jamais alguém possa ler, posto que fosse vivida sem a preocupação de materializar no papel. Destitui-se, deste modo, nossos dizeres construídos e bem arrematados de dor, tristeza, alegria, esperança, saudade, solidão e tudo o mais que geralmente se faz na poesia e nas artes.
Um livro na mesa da sala de visita me convida a folhear. Prefiro imaginar o último que li e adorei, principalmente pela forma e pelo autor que tudo indica ser ele o ponto central: MEMÓRIA DE MINHAS PUTAS TRISTES, de Garcia Marquez. Lindo na sua busca de si mesmo no apagar da existência combalida pelo afeto transcendental e pela idade avançada; pela completa lição que o amor lhe deu em pleno outono da vida, sem clemência. As Putas! Sempre elas em suas configurações mais abjetas nos dando lições de vida e de amor, como fez com Garcia.
Prefiro, contraditoriamente, ficar em pé, mesmo deitado neste chão frio nesta noite meio quente de verão. Sinto que esses dias têm que acontecer na vida da gente porque não podemos deixar de nos pôr à prova vez por outra. Esse confronto me conforta, pois me busco em cada canto de mim como se escondido estivesse em baixo de cada cama, de cada mesa e cadeira. Como se a simbologia psicanalítica me jogasse na frente do espelho a me dizer que “preciso descansar de mim em cama macia, sentar de mim em cadeiras firmes, comer de mim em mesa firme”.
Na parede da sala um relógio marca as horas. Indiferente ao meu momento marca o meu tormento voluntário, posto que vivo um momento bom de vida. Tenho estado em paz com os meus "infernos" domados, com os meus tenazes "capirotos" que vez em quando me fisgam indolentes.
Gosto demais de mim sendo quem não sou pela busca de ser. Serei leve e perene um dia e por toda noite, mas não pra sempre. Para que não me custe mais massacrar as letras, trucidá-las em frases e ordená-las que me traduzam na minha mais lúdica configuração. Lá do outro lado do Recife, no cais da Alfândega, as putas não chegam mais. Talvez cheguem pensamentos prostituídos daquelas que foram e não voltaram. De mim, quero apenas voltar sem nunca ter ido, manter meu cais aportado nos amores que se foram sem que eu mandasse. Nunca fui de ter putas para o meu esbanjamento, mas bem que poderia tê-las no imaginário das aventuras findas.