Embriaguêz [Rascunho]
O cheiro do anti-inflamatório nas costas, o aroma de mentol sobre a ferida, tudo aquilo impregnava o quarto com aquela lembrança distante, algo meio alcoólico, meio entorpecente, que vagava no nariz e nas paredes sem muita vergonha, sem muita graça, apenas um bailar suave entre as cortinas aveludadas da transparência.
A porta era sempre aberta, como um portal que nos distanciava do mundo afora, um templo sagrado destinado a poucos, poucos covardes o suficiente para se esconderem da crueldade da terra, enrolando-se em cobertores azuis e brancos, embebidos em tinta amarga e negra. Os livros bem arrumados e espalhados por todo o cômodo, os móveis impecavelmente limpos, os instrumentos decididamente afinados, e a janela, sempre distorcida com as vistas para fora... Nunca se via claramente o exterior, apenas borrões de pigmentação variável e uma pitada de azul.
A manhã era gris como todas as outras, os olhos lassos de um cansaço inerte à correria dos dias, as mãos finas ornadas de anéis prateados, e uma espectativa consoladora de fim de mundo. A chuva caía frágil lá fora e a melodia torrencial fazia-se um sonifero extático, algo como uma ebriedade ou talvez uma dormência. As mãos se enlaçavam e agitavam-se em fricção tentando aquecer o corpo frio na noite lenta que sempre vivia instalada naquela criatura, à sua frente figuras multi-coloridas, sonhos perfurados pelo som do overdrive, e o delay mergulhado em flanger que se repetia e alargava interrompivelmente... A boca expelia fumaça branca e a carne se deitava no gozo imaterial das engrenagens cronológicas e dissolvidas. Tudo se tornava um e se mesclava ao horizonte.