Não dá para falar coisa com coisa, não numa missa fúnebre. Entendo agora o que é vomitar coelhinhos: é um problema que sai à força de dentro de você.
Geração e corrupção de todas as coisas. As folhas mortas no parque me fazem atinar com a idéia de que não sei o que é feito das folhas que morrem e caem de mim. Elas não são repostas. Nenhuma folha nova nasce, e a gente só perde e vai perdendo até o tempo de não perder mais.
Agora, de novo, tudo é só meu. Os meus dias que amanhecem como devem ser, as tardes que desabam soturnas e as noites que pesam sobre mim. E são só minhas as madrugadas adentro, em que pasmar na sacada joga meu olhar atônito para a luz de estrelas mortas. E apagadas. Porque distantes. E eu tenho a impressão de que nunca vou entender direito essas distâncias. É tanta luz apagada de folhas secas no chão céu do parque. Um réquiem para as folhas mortas e estrelas de luzes que se extinguiram tão distante de meus olhos.
Um réquiem para mim a esta hora: réquiem aeternam.
Minhas palavras soltas ao vento compõem os melhores poemas de minha tristeza, mas não foram escritos, vagam no infinito, vêm e vão, sempre estão partindo e de volta. Quero não mais sentir o enfado de cada inspiração. Estou cansado de minha visão de todas as coisas.
Tudo em volta são fragmentos. Sentado em minha sala, há num canto um fragmento de um poeta, noutro o de um desenhista. Há por toda parte fragmentos de um leitor contumaz, aqui e ali os de um filósofo. Em toda a parte espalham-se fragmentos de mim. Nada na vida se vive de maneira completa e dessa vida aos pedaços estou farto, dessa ânsia aos bocados, dessa vontade de ser alguma coisa aos goles, gota por gota. Não me agrada mais esse prazer homeopático, dessa felicidade ministrada em muito pequenas doses. Não quero mais as pequenas alegrias, prefiro até as grandes tristezas a manterem-me em estado de constante melancolia. Não quero mais nada pequeno, pequenas graças, eis que aceito as grandes desgraças. Aceito tentar sorrir sempre com tudo em volta tão sem graça.
Agora não preciso mais esperar. Por nada. Nem por um futuro incerto que agora sei que certamente não vem. Não vou precisar daquela agonia a olhar a caixa do correio, os dias de férias, nem vou precisar me atormentar com certas lembranças tão doces, tão plausíveis, tão possíveis e agora tão distantes. Muito melhor do que precisar de pouco é precisar de nada.
Decerto uma espécie de ilusão terá sido tudo isso, um sonho bom a se repetir mais uma vez na minha vida e quantas vezes mais? Vontade de dizer que eu não quero mais.
Que sentimento? Leveza. Estranhamente um sentimento de leveza, mesmo com todo o peso da solidão, mesmo com todo o peso das noites e madrugadas que ainda irão desabar sobre mim, eu sei. Mesmo com o peso do próprio corpo jogado no chão, mesmo com a incapacidade de ir buscar lágrimas onde elas nunca estarão. Nem chorar eu consigo.
Vazio. Mais umas das minhas palavras preferidas e suas mais inumeráveis traduções. Vazio, esvaziado, tirado de si qualquer e todo conteúdo, qualquer idéia de próximos sorrisos, qualquer ilusão de momentos se repetirem quando forem tão bons. Vazio como o vazio da imensidão desse céu escuro, entregue a essas insuportáveis madrugadas, essas noites de pensamentos em perambulação.
Quero me irritar contra tudo isso, revoltar-me de vez, mas não posso. Esse terrível e incômodo sentimento de aceitação.
Quero não sentir que há muito mais dentro de minha mente do que fora no mundo inteiro, em todo o universo. Para quem não consegue entender essa desproporção, basta não pensar estritamente em apensas três ou quatro dimensões. Tudo fora é tão pequeno, mas tão pequeno, que cabe mil vezes dentro de um pensamento. E cansa-me tanto pensar tudo mil vezes, cansa-me mil vezes olhar para as mesmas coisas que mudam tão devagar e demoram a passar. Quero luz e velocidade, quero a velocidade da luz para pensar. Minha imaginação traiçoeira, tinha tanto ainda por me ensinar. E ficou calada em mim, displicente, desprezando-me com uma desprezível exatidão.
E uma frase estranha ao diálogo inteiro: nós só temos medo da morte porque não pensamos nela.
Tudo acaba, tudo perece, tudo morre. Nem que seja para nascer de novo. Eu não sei mais quantas vidas tenho. Nem quantas tenho gastado nessa aventura desesperada de viver. E vou viver tudo o que é mais que vida. Vou sobreviver. Como sempre. Seja para meu bem ou para meu mal.
Os dias amanhecem e a vida continua, outros eus, outros vocês, outros eles e elas, outras coisas dentro dos mesmos pensamentos, outras paisagens tantas dentro dos mesmos olhares. Os dias amanhecem e nós temos sempre que levantar.
Empunhar a velha espada.
A última batalha nem começou.
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 01/11/2009
Reeditado em 06/09/2021
Código do texto: T1898662
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