Ah! O tempo... que nos devora e além disso nos engana. Uma volta completa que a Terra dá em torno de seu próprio eixo, uma volta completa que ela dá em torno do Sol. Eis um ano passando, passado e outro a passar. E o tempo tão temido nada é além disso.
Feliz Ano Novo! Todo mundo diz para o velho que sou, que na madrugada do primeiro dia do ano que começa, carrega as mesmas velhas coisas, as mesmas velhas palavras sobre as coisas velhas e novas, conhecidas, desconhecidas e ainda por conhecer. E para as coisas mesmas que nenhum de nós nunca vai conhecer. O velho que sou olha a juventude nos olhos dos outros e se emociona, chora às vezes, pelo fato do tempo que nem existe nem ao menos voltar atrás, só um pouquinho que seja, para vermos o que se esquece, para sermos um pouco mais o que fomos, jovens e sonhadores, cheios de esperança numa coisa que por estar à frente aprendemos a chamar de futuro. Que é para onde sempre olhamos e não vemos nada. Nada!
Eu vou ser tudo de bom nesse novo ano, você também, todos vão ser. Até ele ficar velho. E ele fica velho logo depois do terceiro mês, às vezes antes.
O problema é que nós não nos renovamos em nossas promessas de renovação. Na emoção incompreensível de atravessar a última madrugada de um ano que se acaba e entrar na primeira de um ano que começa, nós confessamos todos os nossos pecados existenciais, para esquecê-los logo depois, no primeiro ou no segundo dia de nossa nova vida.
Dia Mundial da Paz! Primeiro dia do ano e nenhuma das guerras cruentas se entregou a uma trégua. E se tivessem mesmo se entregue a tal trégua, por que dela não gostaram, posto que retornaram à guerra como quem retorna ao trabalho? Dia Mundial de Tudo o que Não Temos. Nem nunca teremos.
Mas vão dizer que vale a esperança. E que não se pode ser assim tão pessimista. Vão dizer que é essa mesma a essência da vida, esse ar de levar os dias como quem cumpre um castigo. Um castigo divino. Não se nega aqui a esperança, cobra-se que ela valha para cada qual que a vai reivindicar. Tenha esperança! Essa frase expressa ao mesmo tempo um desejo, uma dúvida ou ainda um desafio: tenha esperança se for capaz!
Eu apenas me recosto na sacada de meu apartamento, nas primeiras horas da madrugada, que é quando reina o silêncio. Ali há somente o movimento da Terra em torno de seu próprio eixo, e o movimento em torno do Sol. Que trazem os dias que chamamos novos. E os anos. Mas só o silêncio é novo. Eu sei que vai amanhecer e nada de novo no rosto das pessoas, nada de novo em suas palavras e pensamentos, em seus gestos e desejos, em suas ações concretas. E meu silêncio de madrugada na sacada é pura ausência de reflexão. Porque eu não penso. Eu sinto tudo assim como é, como tem sido. Sem pensar. Eu preciso não pensar. Dizem que isso é meditar. Eu digo que é apenas sentir tudo o que pensei, tudo sobre o que refleti, o dia inteiro, o ano inteiro. Talvez a vida inteira. E a vida inteira de reflexão só me trouxe silêncio, um prazer de existir na sacada do apartamento, de madrugada. Só ali.
A imensidão me chama. A escuridão me chama. O vazio me chama. Me chama sempre o silêncio, anfitrião constante de minha solidão.
E eu não fujo das horas do dia. Arrasto-me nelas como que aprisionado, sem ter aonde ir, sem ter o que fazer a respeito de sua falta de graça e vontade de viver. Porque vi a vida no silêncio da madrugada. A vida como um castigo. Um castigo divino. Porque vi a vida quase do modo como deus a vê, inteira em sua essência, do começo ao fim sem ter começo e nem fim. Eu a vi pronta e acabada e sei onde vai dar. A vida se deixa devorar pelo tempo e aposto que o tempo vomita de volta toda a vida que engoliu.
Então olho sempre para o passado, onde estou encarcerado. Porque olhar para o futuro não me faz ver nada nem ninguém. Nada que importe e ninguém que eu seja. E o passado nunca acaba. O que acaba é sempre o futuro. Ele se faz presente e imediatamente vira passado: acaba.
Feliz Vida Velha então. A mesma vida em que nascemos, crescemos e vivemos até então. Nela rimos e choramos. Nela perdemos as esperanças todas para encontrar depois na bagunça das coisas em nossas almas, em nossas gavetas e armários, nos nossos baús e cofres. Feliz Mesma Vida de nossas repetidas palavras (eu te amo e não sei como dizer), de nossas vãs poesia e filosofia. De nossos medos mais profundos, que se escondem no olhar altivo e desafiador do tempo, como o olhar de quem se diz ser a obra-prima da criação.
Feliz Mesma Vida Velha! De todas as palavras que não sei mais dizer: amar, amor, saudade, felicidade (nunca mais vou ver?). Esperança. eu procuro a esperança no silêncio da madrugada, na sacada do apartamento. Na solidão eu procuro o mundo todo. Inútil busca. Eu sempre encontro num outro espelho uma máscara nova ainda desconhecida. Às vezes nela tem um sorriso, com o qual amanheço e ninguém sabe que chorei.
E retomo o caminho da vida como um castigo divino. Com um sorriso de máscara. Com as reflexões do silêncio da madrugada.
À mercê do tempo que me devora.
E me vomita num outro dia.
Num outro ano. Novo!
Feliz Ano Novo!
Feliz Outro Dia!
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 01/11/2009
Reeditado em 06/09/2021
Código do texto: T1898644
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