“Aquele que trabalha com suas mãos é um operário, aquele que trabalha com suas mãos e sua cabeça é um artesão, aquele que trabalha com suas mãos, sua cabeça e seu coração é um artista”

Talvez isso seja só um poema e nada mais. Talvez não. Talvez...

Talvez eu seja rancoroso, desde que haja um bom significado para a palavra. Talvez eu saiba amar e as pessoas não saibam ser amadas, talvez o contrário disso. Talvez nada disso, talvez eu precise aprender a não amar tanto, ou achar que amo tanto, ou talvez encontrar um outro jeito de amar. Talvez eu tenha pelas pessoas muita consideração. Consideração demais e talvez me importe muito com isso. Talvez eu nutra uma estranha esperança com relação às pessoas. Uma esperança de todo inútil, frágil e sem sentido. Talvez...
Talvez eu precise sonhar menos e agir mais. Ou talvez agir o suficiente para poder sonhar o quanto quiser, sonhar à vontade. Talvez a realidade não tenha para mim nenhum significado. Ou talvez tenha significado demais. Talvez eu seja mais racional, racional ao extremo, mais racional do que eu possa imaginar. Talvez seja uma grande e tola ilusão que eu seja assim todo sentimentos. Talvez eu me engane muito com as paixões, talvez achando que delas me alimento até me fartar. Talvez essa fome de tudo ser outra coisa um tanto melhor não seja fome, mas algo que não tem nome. Talvez...
Talvez eu tenha pela vida mais desprezo do que ouso ser capaz de perceber, talvez muito mais do que sou capaz de ousar admitir. Talvez esse asco, esse olhar de viés, talvez esse dar de ombros, essa ausência de um esperado desespero, essa mais completa falta de ansiedade, essa nulidade de quaisquer ambições, talvez isso tudo seja meu melhor jogo de cena posto em meu melhor personagem, que sou um “eu” nenhum de nenhum lado dos espelhos em que me olho. E talvez isso não resista a um olhar atento no espelho. Talvez...
Talvez seja melhor eu estar sozinho, sempre, talvez. Talvez seja bom não ter aonde ir, para onde voltar, não ter onde ficar. Talvez seja melhor sempre recomeçar tudo do zero, talvez esquecer tudo o que quero, deixar de lado tudo quanto espero. Talvez o melhor de tudo seja não esperar nada. Talvez...
Talvez seja bom não desperdiçar esses olhares, não lidar talvez tão bem assim com as palavras e procurar talvez lidar com os números. Talvez eu deva fazer mais silêncio, talvez calar mais sobre tudo aqui dentro, para talvez sofrer menos, ou não, talvez , sofrer logo tudo de uma vez. Talvez...
Talvez seja tarde, tão tarde talvez para tudo na vida. Talvez eu deva somente respirar essas tardes que avançam na noite, essas noites que desabam sobre mim, impiedosas e naturais, e se tornam madrugadas torturantes. Talvez eu deva sorver mais as noites de sábado e as tardes de domingo como coisas só minhas. Talvez dormir mais, viver menos, pensar menos. Talvez menos amor à sabedoria, em tudo o que é, afinal, tão muito mais simples do que podemos ver. Talvez um outro amanhecer de luzes assim tão estranhas, talvez um amanhã que me saia das entranhas, e talvez essa manhã tão supostamente impossível traga quase por um mero acaso algo de novo. E talvez a mim reste apenas esperar. Talvez...
Talvez eu deva dar graças por estar vivo, e andar sobre as duas pernas, conhecer todos os caminhos, ter rumo e direção. Talvez não. Talvez eu deva ser grato pelo alimento, pela água, pelo ar e pelo veneno. Talvez eu deva ser muito agradecido por tudo que afinal de contas eu tenho que arrancar do nada para mim mesmo. Talvez eu deva louvar a vida e todas as suas portas, mesmo que sejam do céu ou do inferno, todas as portas me são batidas na cara e há sempre de todos estarem dentro e eu fora, fora de todas as lógicas, de todas as histórias, de todas as lembranças, fora de todas as casas, de todos os olhares e sorrisos, fora de tudo que é afinal tão simples e corriqueiro, esse sentimento exato de que a vida cabe numa equação matemática. Talvez eu deva seguir as estradas certas, trilhar os bons caminhos, ter uma sina, crer no destino, fazer parte de algum horrendo plano divino. Talvez não. Talvez eu deva me perder mais do que me perco, perder-me ainda mais e mais, de uma vez por todas, para nunca mais me encontrar, para talvez ser menos, ter menos, desejar menos, merecer menos. E me contentar talvez por estar sempre olhando para o nada, o nada da morte, essa angústia de quem vive, o nada da solidão, esse fim de quem ama. Talvez toda essa dor tenha um sentido e um significado, talvez tenha mesmo, mesmo que eu nunca consiga desvendar, talvez tenha. Talvez...
Talvez me falte sal ou açúcar, talvez um sabor de qualquer coisa. Algum sabor. Talvez em tudo tivesse que ter um outro tempero, ou algum tempero, mesmo que fosse uma pitada de raiva, um pouco que fosse de amor-próprio, um grãozinho de ódio ou de desespero, talvez devesse ter usado alguma mágoa a meu favor, alguma doidice ao meu dispor. Talvez eu tivesse que ter gritado, xingado, ter dado todos os possíveis murros em ponta de faca. Talvez ter dito desde o início e imediatamente que não quero mais. Talvez mais montanhas para escalar, mais ladeiras nos caminhos, mais becos escuros, e terrenos baldios, talvez mais poços sem fundo onde me afundar, talvez um tanto mais de emoções baratas, talvez um coração mais duro e uma mente menos displicente. Ou talvez não, apenas minhas lágrimas secretas em minhas noites vazias por simplesmente tudo e em tudo meu mais profundo silêncio, talvez me arrepender por todas as palavras, por cada frase dita, por cada pensamento libertado sem nenhum mistério. Talvez...
Talvez eu devesse ter mentido, ou talvez ocultado ao menos minhas reles impressões sobre qualquer coisa que pudesse parecer verdade. Talvez eu devesse ter aprendido onde por os pés, onde por as mãos, talvez aprendido para onde ter dirigido o olhar, ou talvez devesse ter fechado os olhos a tudo, talvez menos luz, menos lucidez. Talvez...
Talvez eu devesse ir atrás de você, ter ido atrás de tudo o que quero. Talvez eu devesse tentar tornar fáceis as coisas difíceis, mesmo sabendo que é muito difícil tornar fácil as coisas difíceis. Ou talvez eu torne sempre difícil as coisas fáceis e, desistindo delas enquanto difíceis, essas coisas permaneçam sendo o que realmente são, fáceis. Talvez muito mais fáceis do que percebemos. Talvez jogos de palavras e de idéias, talvez apenas jogos, nada mais. Ou talvez tentar outro caminho, outros desertos, outros portos distantes, talvez eu devesse ter prestado atenção em tantos outros pensamentos que se dão muito além do cais. Talvez um mar aberto, uma ilha perdida, um naufrágio talvez, não ter tantos tesouros escondidos. Talvez eu devesse construir com gestos todas as histórias, todos os destinos, talvez um desatino, uma coisa nunca antes pensada por se fazer, apenas por fazer, ação e simplesmente isso, ação talvez. Talvez...
Talvez eu devesse deixar que vivesse mesmo uma vida melhor do que a vida que posso lhe dar. Talvez fosse de fato necessário livrar você de todo peso, de toda a incerteza trazida pelo tempo, talvez afastar você dessas coisas todas tão complicadas. Talvez complicadas. Talvez não. Talvez eu soubesse de toda a distância mesmo antes de a distância se fazer concreta, palpável e presente, e talvez eu devesse viver somente todas as distâncias, nunca estar por perto, nunca desperto, e não cultivar talvez qualquer proximidade com o que quer que seja. Talvez...
Talvez tudo seja apenas isto: essa tristeza e essa solidão, esse imenso silêncio nas horas mais erradas. E talvez esses medos todos nas horas mais acertadas. Talvez tivesse que ter aceitado a efemeridade desses momentos que às vezes parecem tão eternos. Ou talvez percebido que há eternidade em momentos apenas efêmeros. Talvez só isso. Talvez...
Talvez eu devesse ter olhado as estrelas mais como astrônomo do que como poeta. Talvez tivesse sido melhor ter olhado a vida como espectador mais do que como amante. E talvez sentido o amor mais como objeto do que como sujeito. Talvez fosse melhor não querer nada tão perfeito, talvez nada ter feito, talvez nada revelado, nada escrito, nada pensado, nada dito. Talvez nada. Talvez...
Talvez ter olhado para tudo mais como observador do que como amante, esforçar-me talvez para não amar e não ser amado, ter economizado sentimentos tão caros e tão raros. Talvez ter todo o prazer como coisa corriqueira do corpo, talvez só isso, como se fosse possível, talvez tornar possível, como algo somente do corpo muito mais do que como alguma coisa d’alguma alma. Talvez...
Talvez eu devesse apagar toda a história, destruir talvez todas as memórias, viver de esquecimentos, talvez, rasgar todos os papéis acumulados, quebrar todos os instrumentos que me tornam outra coisa, talvez desativar todos os mecanismos da imaginação. Talvez encarar tudo o que se derrama mais como tolices do que como inspiração. Talvez não inspirar, não respirar, talvez não mais caminhar, não ter talvez tanto empenho e arte em lembrar e relembrar e lembrar tudo outra vez. Talvez...
Talvez eu devesse ter dito tudo isso e muito mais. Talvez não ter dito nada, nunca mais, ou talvez nunca ter dito. Entre o tudo e o nada, o dito e o não dito, uma existência que se resume em grandes fracassos diante de pequenos triunfos, esse poço que somos de emoções baratas, talvez me esvaziar mesmo dessas águas. Talvez ter arrancado tudo pela raiz, talvez não ter desejado tudo quase por um triz. Talvez fosse melhor eu não ter querido tudo como quis. Talvez não ter me iludido poder ser feliz, porque a felicidade é melhor não saber se existe do que saber que não se tem. Talvez...
Talvez haja um outro modo de ver tudo, de sentir tudo, de saber tudo, tudo o que é necessário, nada além, nada a mais, nada mais, só o necessário. Talvez haja um outro olhar, um outro mar, algum outro cais, talvez haja mesmo essa coisa de nunca mais. Talvez...
Talvez eu devesse escolher viver sem você, e muitas outras coisas que não quero. Talvez não escolher entre o querer e o poder, talvez nem ao menos poder. Talvez o querer seja só mais alguma coisa com a qual a gente se engane, talvez haja uma fronteira tão tênue entre o que se é e o que não se pode ser. Talvez...
Talvez haja alguma grande coisa nessas coisas tão pequenas, talvez o demônio tenha criado a luz e deus as trevas, talvez o mundo não seja pequeno e nem o universo infinito, e nem seja a vida um fato consumado, talvez haja em meio a todo esse terror algo talvez muito belo. Talvez belo. Talvez...
Talvez haja ainda tempo, tempo para mais um poema, um monte de palavras tolas e inúteis lançadas ao vento, a se perderem nos quatro cantos, talvez um pouco mais de tempo para essas coisas lindas que jamais existirão. Talvez sim. Talvez não. Talvez...
E talvez isso seja só um poema e nada mais. Talvez não.
Talvez eu viva para brincar em outros quintais. Talvez não.
Talvez...
Talvez eu ame você para sempre. Talvez eu esqueça todo o amor ao virar a esquina, talvez não haja mais essas esquinas por que passei, talvez eu desista mesmo de amar, nem sei, talvez sei, se é que sei que não sei que sei. Talvez haja mais o que pensar e fazer, talvez vida muito mais além dessas janelas, talvez haja vida lá fora, lá fora no mundo, fora do mundo, talvez fora de tudo, talvez fora de mim. Talvez...
Talvez tudo isso termine, talvez derramar tudo de uma vez seja sofrer toda essa dor inútil e sem fim ainda uma outra vez. E talvez não aprendemos nada ainda sobre o fim, do fim e com o fim. Fim talvez de tudo. Talvez...
Talvez eu alimente esperanças em relação a todas as coisas, e nem dê com isso a devida atenção, talvez eu nunca esteja atento com o fato de que o que nos mata ou faz sofrer é qualquer esperança. Talvez então eu possa estar vazio, esvaziar o corpo das dores, a alma dos amores. Ou talvez esvaziar meus olhos das cores, das paisagens, talvez não haja mais o perfume de flores, talvez esvaziar minhas mãos dos gestos , meus ouvidos das mais belas sinfonias, talvez eu possa esvaziar todos os meus dias, esvaziar a mente das lembranças, esquecer os gostos e em minha língua matar as palavras, conter os pensamentos que me invadem, expulsar os demônios, matar os anjos, correr com os santos para fora do templo, sem pressa e sem preces, talvez eu possa destruir todos os deuses, todos os ritos, todos os mitos. Talvez...
E, vazio de mim, e em mim, vazio por mim, talvez isso não passe mesmo de palavras ao vento, poemas para o esquecimento, e nada mais. Talvez...
Talvez essa tristeza seja somente medo, medo da solidão. E talvez essa solidão seja só uma tristeza que nasce sempre de uma certeza. Ou talvez nem seja medo, talvez um arremedo dele, um pequeno engano, talvez uma impressão apenas, uma impressão de medo que mais é uma coragem velada de tocar em frente com o que vem e com o que se tem, e como vem, quando vem, talvez um desejo reprimido e escondido de estar a olhar em volta e ficar satisfeito em não encontrar ninguém. Talvez ninguém. Talvez...
Talvez abandonar tudo, deixar meus passos pelos caminhos, meus rastros em nenhuma estrada, talvez cessar de lançar palavras ao vento, colher as tempestades, não permitir nunca mais nem lágrimas nem lamentos, aceitar o mal como mais possível e real do que o bem que imagino espalhar-se por toda a parte. Talvez ser capaz de negligenciar quaisquer sentimentos acerca de absolutamente tudo, tudo talvez absolutamente sem o menor sentido. Talvez sem sentido. Talvez...
E talvez procurar não me arrepender de tudo aquilo que não fiz. Talvez procurar fazer todas as coisas, sem medo algum de me arrepender. Talvez nunca o arrependimento. Talvez!
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 29/10/2009
Reeditado em 06/09/2021
Código do texto: T1894283
Classificação de conteúdo: seguro
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