[Que o Esquecimento me Proteja]
"Criaturinha",
Falo de nada, falo de tudo, como sempre! E desde que falo a você, tem sido assim. No que penso que é tudo, tem nada... e no que penso que é nada, tem tudo... não; tudo não — tem muito, tem apenas muito, pois nunca, nunca mesmo, a gente consegue dizer tudo que o pensamento engendra!
Dirigia o meu carro pela estrada que vem dar na minha prisão. Ouvia uma declamação do poema de Herberto Helder "Minha cabeça estremece com todo o esquecimento..." Entretido no ritmo do poema, eu deixava passar por mim os carros que vinham de trás...
E logo, passei pela minha árvore da raiz torta, um ipê que desafia ventos e homens destruidores. Digo minha árvore porque há vários anos a observo; paro para vê-la, acaricio as suas flores, admiro-me de a terraplenagem da estrada ter permitido que ela vivesse: o barranco foi cortado rente à raiz, desnudando parte dela. Antes de virar tronco, ela faz um ângulo quase reto para terra, recusando a luz, mas depois sobe, entronca, e se esgalha numa bela arvorezinha — minha, agora que a adotei!
Mas como eu ia lhe dizendo... havia a estrada, passavam os outros carros, e havia o poema que me transportava mais longe do que pode o meu carro, e logo surgiu a arvorezinha — foi então que, no ato da captura da sua imagem, vi o meu tempo se acabar!
Passaram-se os anos e a arvorezinha parece a mesma, cresceu quase nada, não teve tempo ainda de crescer. Mas nesse mesmo tempo, curto demais para ela, foi bastante para eu vir morrendo, e sempre deixando de viver o que podia ser vivido. No alheamento de mim, passou o tempo — eu vim pela estrada espalhando perdas como coisas que a gente guarda num bolso furado. Contemplando a arvorezinha, vi que não tenho mais tempo para nada, vi que a cartomante que disse a minha mãe que o filho caçula ia ser famoso, estava errada — vou ser é nada! Meu tempo, desde que voei da grande avenida da infância — passou e eu não vi!
Sim, o poema — leio e ouço como eu quero, e não como é — é síntese poderosa, está certo — o esquecimento é lancinante, é atroador mesmo... atroador de estremecer a cabeça da gente... Por isto, quando dirijo meu carro para a minha prisão, tudo que eu espero é que o esquecimento me proteja de amargos julgamentos, e que, quando eu não mais passar por aqui, ninguém saiba que aquela arvorezinha, por um tempo breve, foi minha! Sou, sei-me bem, um risco que o vento desmancha na areia. Será como se eu nunca tivesse passado pela estrada que dá na minha prisão. Livre, mas para quê? Viver, eu vivi, mas para quê?
PS. Não atino com a razão de eu ter-lhe escrito esta carta... mas isto não importa, não é?
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[Penas do Desterro, 22 de outubro de 2009]