LETARGIA
Arregalados os olhos
Admirados olham o quadro não pintado
E na parede descascada pelo tempo
Sem tinta outrora rosada
Um alguém da varanda olha
No asfalto o corpo imóvel está.
Quem será ou quem seria?
Resposta sem certeza se balbucia
E curiosos inventam suas versões
Que já não se conhece o início
E o fim é o corpo rígido.
Um coitado?
Um operário?
Um mendigo?
Não se mostra a vergonha nacional.
Às caras atentas os carros olham
Não param o trânsito diário
E o rádio que inventa notícias
Já não dá horóscopo nem número de loteria.
Enfeitada como pavão no cio
A dondoca palavras bonitas pronuncia
E desconhece a rudeza da roça
Vai às compras das grifes que nada acrescem.
E zombam a miséria alheia
Não se reconhece naqueles os seus
Mortais na vida real
Porque só na academia que imortaliza o poeta.
E o chá das cinco em porcelana se serve
Os bombocados na Colombo comprados
Adoçam as células da língua imortal
Mas não eliminam o fel que é a vida diária.
Que sejam imortalizadas as obras e os autores
Que se produzam os versos camonianos
E os Pessoas que aqui habitam
Nos trazem o Tejo e os Rebanhos e as Tabacarias.
E a massa humana caminha
Ao ponto a estação e à plataforma
Nos aeroportos se verificam os dados
E se caminham às poltronas numeradas.
E ao fim do mês cansado chega
Para a poucos dias receber a paga
E voltar ao começo para o fim e o começo
E esquecer o corpo que jaz no chão.
Porque amanhã será outro dia.