Maçã Na Boca da Serpente - Capítulo 1
Maçã na Boca da Serpente
Livro I
Rafaello
Prólogo
Afasta-te. Creio que não há ordem mais adequada que um pode deixar cortar-lhe a boca do que esta. Qualquer moça bem nascida seria advertida ao ver-me. Não que seja fácil simplesmente ignorar-me. Uma das belas falhas de criação de minha mãe, tornei-me tão impregnável quanto um pode ser. Enquanto olhas-me escondo-me sob tua pele, percorro-te o sangue e teu pensamento me agarras com tanta força que tu achas, e às vezes concordo, que estas enfeitiçada. Não te culpes, fui criado para causar-te tal efeito. Fazer-te querer-me. Mas não sejamos superficiais, há mais do que a aparência. Creio que os gestos e o comportamento de meus olhos figuram entre os principais. Estranhos olhos, convenhamos, um azul outro verde, partes da aberração que sou. E os suspiros que acariciam os lábios das belas mulheres... Oh, Rafaello! Soam como música aos meus ouvidos.
Don Juan? Oh, não, não, não... De patético espanhol que se apaixona por qualquer fêmea que lhe cruze o caminho meu peito é vazio, estupidamente vazio. Menino de meretriz não acredita nessas coisas. Amor, já não lhe foram dedicadas as mais belas melodias e palavras? Dois jovens enamorados cujas sombras se beijam no parque, bela cena para papel. Amar, a meu ver, é um ato demasiadamente divino. E eu, mero humano, imperfeito em tudo que me é impossível, julgo-me digno e capaz de amar? Ou sou tão prepotente ao ponto de assemelhar-me ao divino, ao grande Baco, por exemplo?
Devo estar a chatear-te, importunando-te com estes devaneios sem rumo. Mas entenda-me, a mente de um bastardo não segue roteiros. Ela corre de um canto a outro, ricocheteia nos becos e tropeça nas poças do fétido esgoto que me torna o que sou. Incapaz de desejar uma mútua troca de sentimentos. Ser altruísta, sacrificar-me por outro? Meu coração bate em seu próprio ritmo funesto e único, inabilitado de assemelhar sua batida àquela de outro coração. E parte do magno sentimento não é tornar-se um?
Ah, como invejo os ingênuos apaixonados! Enganam-se ao assim se julgarem, mas como me parecem tão felizes! Privar-se da vida por alguém, caber-me-iam os trajes de Romeu? Creio que não. Minha pele sob o tecido, minha face sob a máscara, meu sangue tingido de nobre azul... Há encaixe de corpos, não de almas! E, claro, um vil humano, criatura rastejante e amoral, carece deste singelo artefato.
Então, bela dama ou nobre senhor, tu que até agora me lestes pacientemente, desejo que não te assustes com as seguintes histórias. Conto-te os pérfidos e pecaminosos detalhes de minha existência, mas alerto-te: priva as mentes inocentes de minhas confissões. Dito isto, abandonemos o monólogo e entremos em cena!
Conversas de Beco aos Treze Anos
Mãe nunca foi dotada de grandes outras qualidades que não seu corpo. Belas formas inspiradas nas geladas e gregas estátuas de mármore, porém mornas o suficiente para acalentar-me quando se desembaraçava das carnes masculinas. Não havia nada mais que soubesse fazer, apenas agradava aos seus acompanhantes e assim se sustentava.
Quando entrou para o bordel de meu pai, ainda aos quinze anos, após a sessão de degustação engravidou-se de mim. As regras do bordel eram claras: nada de filhos. Mas mãe, tomada por um instinto materno que em nada lhe era familiar, pôs-se como leoa a defender a cria e defendeu-me a permanência com dentes e garras. Foi este o único presente de meu pai: deixar-me ficar. Desde que não perca o tempo com o bastardo...
Amamentava-me entre seus compromissos e as meretrizes divertiam-se com seu novo rebento, aconchegavam-me nos panos de suas saias e apertavam-me as maçãs do rosto como boas tias fariam. Apesar de toda a luxúria que exalavam souberam manter-me a ingenuidade, por pouco tempo, é verdade, mas se esforçaram.
De meu pai herdei a paixão pelo vinho. O rubro líquido aquecia-me a garganta tão docemente que não pude resistir aos seus encantos. Não eram raras as vezes que, ainda pequeno, escondia uma garrafa contra meu peito e trancava-me na dispensa, tão grato ao torpor que me invadia a mente... Belo torpor este que impedia o encontro dos urros e gemidos com meus ouvidos. Cerrava as pálpebras e cantarolava, murmúrios desconexos saltavam-me dos lábios e dançavam pelo asfixiante cômodo. Quando encontravam-me adormecido, camisa manchada de tons vermelhos, apenas riam-se e me punham na cama. Oh, não é uma graça nosso pequenino boêmio?
Eu perdido nos lençóis. A ecoar contra as madeiras, os gemidos e urros dignos de um macho, o silêncio comprado da meretriz. Não que sempre fosse assim, havia os que preferiam a vibração das cordas vocais. Outros, amantes de harmoniosas melodias, contentavam-se somente com orquestra e, para tal, um “ménage à trois, à quatre, à cinq” lhes cabia muito bem. “Não são orgias”, mãe disse-me quando lhe flagrei a cantar, “apenas jogos, querido, competimos, quem provocar os sons mais belos no outro ganha”. Claro, um de cinco anos, sempre à procura de novas brincadeiras, vê-se louco para testar a novidade.
Ora, a oportunidade demorou para me encontrar, longos oito anos. Porém, uma vez frente a frente, jamais me largou. A vontade de jogar impregnou-se em minha essência, pus-me a satisfazê-la duas, três vezes por dia. E levei a sério as instruções de mãe, ávido por induzir os mais perfeitos sons que uma mulher é capaz de entoar. Tratava-lhes como a um violino, uma harpa, um piano, cada um instrumento único. Contudo, mãe ensinou-me a amar a música, nunca o instrumento. Não só mãe, mas todas que se dispuseram a amamentar-me.
Um de meus cantos preferidos era o beco próximo ao teatro. Quantas vezes não permaneci lá durante toda a tarde? Aproveitava para espiar, por entre as frestas das janelas, os ensaios dos diversos espetáculos. Atores, atrizes, cenários. Imaginei-me no palco em diversos devaneios. Uma das janelas dava-me acesso a um dos camarins femininos e digo, com todo o respeito, que ali encontrei a primeira a tirar-me os sentidos. Não por completo, mas o suficiente para fazer com que a carne latejasse. Observei-a se admirar no espelho...
- Ei, bastardo, tua mãe cobra quanto?
Interrompeu-me um garoto no beco. Ah, quão agradável me seria ter-lhe o sangue do focinho a banhar-me os dedos. Velha tática dos jovens espécimes, apelidar a mãe alheia de meretriz. Mas quão original... Não me seria sensato perturbar-me com esse ruminante.
- Qual é, bastardo, não decoraste ainda?
Rumina, rumina, regurgita. Meus dedos rogavam uma carícia em seu focinho. Carícia. Talvez, se minha progenitora não acariciasse tantos machos, talvez, não me caberia decorar-lhe o preço. Filho de uma meretriz. Bem, soa-me melhor do que filho da puta.
- Bastardo – o ruminante aproximou-se, um sorriso débil preenchendo-lhe os dentes amarelados – não vais ajudar tua mãe a ganhar pão?
Antes que eu pudesse formular algo, meus dedos contornaram-lhe o pescoço. A pele branca avermelhava-se, minhas unhas brincavam com a presa.
- A minha cobra – aproximei-me os lábios de sua orelha – a tua faz de graça.
Ainda preso, o espécime deixou escapar promessas de vingança. Oras, deveria temê-las? Apenas a presa ser maior do que o predador não dá novo nome às coisas.
- Agora, rumina, vá-te embora! – assisti-lhe tropeçar para fora do beco.
Logo a criatura estava fora de vista, voltei os olhos para dentro do camarim. Ela ainda estava lá, encantada com a própria imagem. Absorto, eis a palavra que melhor me definia naquele momento. Seus dourados cachos lhe tocavam timidamente os ombros, estes tão róseos como as bochechas das bonecas de porcelana. Ansioso esperava que ela se despisse. Com seus delicados dedos contornou as alças do vestido mas, como se despertasse de repente, suas íris azuis encontraram-me no espelho. Não gritou. Não correu. Nada fez que eu esperasse. Moveu os rubros lábios, ainda a encarar-me pelo vidro.
- Sabes, olhas-me como se estivesse prestes a devorar-me. És tu o leão e sou eu a gazela? – virou-se em direção à janela e pôs-se frente a frente comigo – Então, diga-me senhor, é assim que tu pensas?
- Quanto ao devorar estás certa, mas não te quero como o leão deseja a gazela, quero-te como o leão deseja a leoa.
Esperei um tapa que nunca veio. Ela abriu a janela e colou sua boca à minha de uma maneira tão selvagem que fiquei sem palavras.
- Desta forma?
- Se me deixares entrar posso mostrar-te os detalhes.
Apertou-me a mão na sua e puxou-me para dentro do cômodo. Depois sentou-se no divã, um dos pés neste, escorou o queixo no joelho. Mas que bela visão de sua perna! Não era aquela coxa uma obra-prima? Permaneci em pé, a cerca de um metro, perdendo parte da coragem que antes me inflara o peito.
- Algo errado? – passeava os dedos pela pele descoberta – E eu que pensei que esse leão fazia mais do que rugir...
- Tenho então a tua permissão?
Deitou-se no divã a rir. Cerrou as pálpebras e pôs uma perna de cada lado do móvel. Mordiscou os próprios lábios, sublimes lábios que eu ansiava por tomar entre os meus novamente!
- Como te chamas, ó rei das selvas?
- Podes chamar-me da maneira que te convir, qualquer nome que te apeteça me será doce aos ouvidos. Mas chamam-me de Rafaello.
- Rafaello me apetece – sussurrou ainda de olhos fechados.
Movi-me os pés lentamente até sentar-me no divã, próximo à sua cintura. Uma de minhas mãos passeou por seu pescoço, a outra por sua coxa. Não estava acostumado a este tipo de contato. Mas o que mais me encantava era a forma como ela dançava ao toque destes dedos. Livre, sem pudor algum. Não eram as moças ensinadas a nunca cederem aos rapazes? Passos no corredor.
- A porta, importas-te? Não quero que nos perturbem.
Levantei-me rapidamente, consciente do perigo que nos era cenário. Logo após trancá-la, vi-me jogado contra a madeira, de costas para minha agressora. Mordiscou-me o pescoço enquanto acariciava-me o peito.
- A propósito, sou Mirabella.
Aos diabos com o perigo! Cheguei até a desejar que nos ouvissem. Virei-me o corpo, encaixando nossas silhuetas e devorando-lhes os carnudos rubros. Não preciso pois contar-te os detalhes, preciso? Digo que Mirabella foi minha primeira companheira de cama. Tínhamos treze anos.