A última vez. Frase boa de ser dita, desde que você seja a pessoa a oferecer algo pela última vez. Já se você é a pessoa que espera receber, isso é lá outra coisa, bem diferente. Pior do que esse predicado seria outro a tornar a frase ainda mais sofrível: a última noite.
Imagine você se o caso fosse bem outro. Compre batatas fritas, daquelas caras de embalagem cilíndrica, americanas, eu acho, tire uma batata, uma só, e coma e diga para si mesmo: a última batata. Whisky? Tome a última gota. A última latinha de cerveja. O último pastel da sua vida, coma hoje. Então compre sua pizza preferida, coma o último pedaço e jogue os outros sete fora, para nunca mais.
A última noite. Imagine uma força sobrenatural que sobrevenha na primeira hora do seu dia, quando acabou de acordar e lhe diz que este é seu último dia. Vai ser a última tarde, a última noite, a última madrugada.
Pouco importaria se o dia amanhecesse nublado, ou até o mais lindo dia da sua vida. Seria o último mesmo. Por que não fumar aquele cigarro mesmo antes do café? É o último dia, mas pelo menos não o último cigarro. Atrasado para o trabalho, mas o último dia de trabalho teria sido ontem, e não hoje. Saber que é o último dia só não é pior do que saber que esse dia é segunda-feira. Então transformemos esse num domingo.
Imagine agora coisa pior. A mulher da sua vida, seu grande amor, lhe diz que essa vai ser a última vez da última noite. Diga sim ou não. É pegar ou largar. Pode ser que a noite seja ruim, ainda bem que foi a última. Mas, se ao contrário, for muito boa...
Mas não evitemos aqui a metáfora da última vez, último dia, do sobrenatural ser a figura da morte que lhe bate às portas bem naquela hora de lavar o rosto e avisa: hoje é seu último dia. Segunda-feira. Feliz dos meus amigos que terão três dias de folga por conta do luto. Chorarão muito quando o luto acabar.
Então hoje não é mais segunda-feira, hoje é meu último dia, é o dia que eu quiser. É domingo. E mais que isso, é meu aniversário. O aniversário número zero de minha morte.
Mais um cigarro na janela. Olhando a minha árvore como sempre fiz. Hoje ela tão mais eterna do que sempre foi. Com todo o tempo do mundo para fazer brotar folhas, matar folhas que derruba no chão, brotar e matar galhos, deixar nascerem flores que atrairão os pássaros. Agora percebo que ela tem movimento. Ela cresce para cima e para baixo, ela espalha suas ramas, avoluma a copa, finca sua raiz. Ela está e vai ficar viva.
E agora chove e aviso aos dois guarda-chuvas que eles não irão passear. Eu vou. Saio na chuva e me molho inteiro. Posso pegar uma pneumonia, sete dias de antibióticos. Quer dizer, um dia. O farmacêutico não me venderia apenas um comprimido. Então não vou tomar assim mesmo.
A manhã mal começou, que vou fazer de meu dia inteiro, de meu último dia? Pouco importa, não há porvir para mim. No último dia tudo perde o significado, até o futuro. Reparo, então, que o futuro não existe, não para quem não o tem, deve existir só para quem não sabe que o tem.
O que deixo para trás? Ora, por que a preocupação, se tudo atrás é que me deixa? Tudo que ficou para trás é como o reverso do futuro, tudo o que não vou mais ter.
Isso descarta a tentação de revisitar todas as fotos que irão remeter a esse futuro reverso, que nada mais é do que passado, algo que já não tem mais tanto significado. As pessoas das fotos estarão todas vivas, amanhã. E já não haverá muito significado em ver-me tão magro em cima da moto que tive, eu e meu irmão com o cabelo “black power”, aquelas calças boca-de-sino, aquilo tudo anos setenta. As fotos dos filhos ainda bebês, registradas ano a ano crescendo, virando crianças, adolescentes. A minha primeira escola, uma namorada antiga, os aniversários, as fotos do casamento que acabou antes de acabarem-se meus dias contados, aliás, meu dia contado.
Meu baú de coisas guardadas, na realidade caixas de vários tamanhos, um celular antigo, brinquedos de kinder ovo, pequenos souvenir, todas aquelas canetas de vários tipos e cores que não serão usadas, e os lápis e pincéis. Os papéis, não posso esquecer-me deles, alguém poderia usá-los por amor a alguma arte que haja nesse mundo, bem como as tintas e os lápis de cor, as canetas de nanquim. Já me despeço da velha prancheta, sem conceber como viverá sem mim, abrir-se-á para outro, traidora, que poderá fazer desenhos melhores. As réguas e os esquadros e meu compasso de gente grande, não preciso mais traçar círculos nem curvas, quando nessa curva meu próprio círculo se fecha.
As folhas de papel almaço esperarão poemas que não virão. Meus versos não poderão mais encontrar aquela palavra sorrateira que se esconde no parque, na qual tropecei e manquei por três dias.
Os insetos passeiam displicentemente pela casa e me olham entre penalizados e satisfeitos. Já não sou mais dono de nada. Eles adivinham que amanhã seus ovos poderão ser colocados à vontade e perpetuarão essa espécie que bem sabe viver plenamente poucos dias. Sou como eles e minhas horas que restam são como seus dias dedicados somente a alimentarem-se e reproduzirem-se.
Ainda não comi jiló. Não vou saber o gosto que tem. Tanta coisa passou na vida sem que eu soubesse ao menos o gosto.
Tantos livros na estante que ainda não li. E poemas que não escrevi. Tantos desenhos por fazer. Tudo na orfandade desse amanhã que não vem. Concerto para violino e a nona de Beethoven, as Quatro Estações de Vivaldi, e Mozart. Já se foi a última vez que os ouvi. Há agora uma música do vento dançando nas folhas das árvores. Mas não quero mais a música que me impossibilitaria ouvir o estrondo do tempo passando. Que não decifrei e me devora.
Os quadros de Van Gogh, Dali e Picasso, as esculturas de Michelangelo, isso tudo nos livros me convidando para o deleite que rejeito. Meus olhos contemplam agora o espaço que me abraça nos momentos derradeiros que me envolvem com seu manto, provavelmente na última madrugada, a escuridão iluminada de estrelas que me esperam para não mais me ver, a não ser como uma estrela vê um ser ínfimo e distante a contemplar tudo o que é mais do que distante.
A distância tão sem significado. O mistério, o desconhecido, tudo sem significado na revelação da essência aterradora de se saber acabando.
As cidades que não visitei não me esperarão afoitas. As pessoas que não conheci nem sequer me odiarão. As mágoas seguirão sem perdão, as dúvidas sem solução, as pequenas brigas sem reconciliação. Tudo que penso de todos e tudo que todos pensam de mim, completamente sem significado ou importância. E todos os meus medos se resumirão num só e nem será medo, será uma excitação tal qual a de ter dezesseis anos e pensar que o momento último seria assim tão revelador.
Ah! Mulher que me ofereceu uma última vez a última migalha do amor, numa última noite. Agora não me vá querer vivo, já que estou morto. O amor último consumiu a última centelha de vida. Agora tudo o que disse hesitante entre a verdade e o sentimento dissipando-se nas horas passando insensíveis para com a consumação de tudo o que teria que dizer, tudo o que nem fui, nem fiz, nem quis.
Mulher tão amada que nem soube o quanto e nem sabe. Nem imagina e não vai saber, porque não lê meus poemas, não esquadrinha meu jogo de palavras que sempre houve por bem delatar meus mais íntimos sentimentos. Viverá sem saber o que eu via em seus olhos, como olhava demoradamente sua boca, como decorava as curvas de seu corpo com tanto esmero para nunca esquecer. Nem desconfiará o quanto gostava do cheiro de seu cabelo, do toque suave de seu abraço, da beleza singela e plena de sua nudez. Não será capaz de saber o quanto gostava de fechar os olhos e passar a mão pelo seu corpo, como que para saber se me lembraria de como a via antes de uma provável cegueira. E nem de como seu sorriso era suficiente para fazer surgir outro universo e nem de como sua presença me anulava as vicissitudes de uma vida tão vazia e sem sentido, tornando-me pleno só por ser anfitrião de tudo aquilo que desejo.
Não saberá como sua ausência me pregava à janela a interrogar a rua vazia, que me dizia o tempo todo que não vinha, e as horas passando zombeteiras provavam a verdade de que não vinha mesmo.
Torturante saber que todos os beijos não estão no futuro, mas não perderam nem no passado todo o significado. E como eu vivia para sempre só pelo fato de lhe velar o sono só por um instante!
A última vez na última noite, o desejo pesou como um açoite. A tortura implacável de todos os ponteiros de todos os relógios condenando-me à efemeridade de tudo acabar no fim de tudo. A aurora vindoura agourenta candidatando-se constantemente a ser a última. Os dias passando incertos, a distância impondo saudades incomensuráveis. E esse vazio tão pleno em mim...
O coração traiçoeiro me pondo palavras doces na boca, e o gosto amargo de ter de estar a andar pela casa silencioso, ensaiando conversas para outro dia.
Interrogo o aviso repentino de me dar tão pouco tempo para tudo quanto existe. Em vão, justamente no momento em que o próprio tempo perdeu todo seu significado, e fecha sua bocarra sobre mim.
Mulher da minha vida, vida tão sem nada, da minha vida cuja história é tão mal contada. Mulher que me arranca da realidade para um mundo de sonhos, mas que não me arranca da morte para um sonho de vida.
Meu vôo para o infinito com hora marcada, meu último passo na estrada, meu descanso na caminhada, meu fechar de olhos para não ver mais nada. Tudo isso acontecer agora, nesse último passo diante do abismo...
Nem há tempo sequer para dizer que te amo, porque te amei ontem e não vou poder amar amanhã, que não amanhecerá. Última madrugada da última noite do último dia, a última vez...
A última vez na última noite. Apagaram-se todos os candelabros de minha casa de espelhos. Não vivo mais se não vir quem sou. E nem olhando para trás sei quem sou, nem para trás olhando...
Os estilhaços espalhados pelo chão...

 
 
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 25/09/2009
Reeditado em 22/09/2021
Código do texto: T1831195
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