Um dia, voltava para casa e sempre corto caminho pelo parque. Tropecei numa palavra escondida sob as folhas secas caídas das árvores. Quis ver qual era, que palavra gostava de esconder-se sob as folhas, mas ela era rápida e fugiu sem que eu pudesse ver. Machuquei o pé e manquei por três dias, por causa de uma palavra.
 
Toda noite tenho a impressão que a palavra canta, tranqüila no parque, no meio da madrugada. Canta como um pio de coruja, um pássaro que não se conhece. Abro a janela com calma e nada de aparecer, para eu ver como é, como faz, se anda ou voa, se rasteja, essa palavra-mistério que me fez mancar por três dias.
 
Já fui de madrugada ao parque, com um andar sorrateiro, na esperança de surpreender a palavra que deve se alimentar de alguma coisa, pequenos insetos, folhas ou flores. Mas acho que as palavras são ariscas e estão sempre atentas aos nossos passos.
 
Percebi que não existem palavras de estimação, elas não se deixam domesticar, vêm comer na sua mão com um olhar desconfiado, sempre no escuro, para que não se possa vê-las, gostam de tomar água em tampinhas de garrafas se você as deixar em casa. Mas não adianta acender a luz, que elas desaparecem.
 
Estava pensando. O que seriam as palavras de verdade? Não se pode vê-las, saber quantas patas têm, se são peludas ou peladas, se são grandes ou pequenas ou se têm asas. Imagino que seriam como fadas, mas não são fadas, nem duendes, são palavras. E essas palavras que usamos? O que são?
 
Sei que não são palavras que andam debaixo de folhas secas no parque, nem comem no escuro e bebem água em tampinhas de garrafa. Muito menos piam de noite empoleiradas nos galhos das árvores. Nunca ninguém as pegou ou viu. Devem ser alguma coisa que dá origem às palavras.
 
Toda noite, então, quando saio do trem e ando pelo parque em direção ao apartamento, as palavras esgueiram-se sorrateiras por entre os troncos e debaixo dessas folhas. Elas me espiam, de longe, com cautela, elas me conhecem. E sabem que eu sei que elas existem.
 
Eu persigo aquela primeira palavra, ainda escondida, a primeira que me viu e fugiu. Mas com o estardalhaço de não querer ser vista, mas querer mostrar que existia. Para eu persegui-la a vida toda. E imaginar o encontro, o deparar-se com ela, cara a cara (cara a cara?), ou cara a letra. Palavra essa que me conhece sem eu conhece-la. Palavra essa que quando se mostrar, saberei ao certo de que é feita toda a poesia
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 25/09/2009
Reeditado em 22/09/2021
Código do texto: T1830106
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