A noção de tudo que tenho é de um cadáver que vem dar na praia
E eu, náufrago, nele vislumbro estarrecido meu próprio rosto
E sou o mar que à praia me traz morto, sou um rosto e outro rosto
E o além do mar, onde todos estão distantes e também mortos
E o mar é o passado que fica me trazendo os mortos de então
E os mortos de então nada mais são que os vivos de antanho
Que me veriam vivo se eu não tivesse morrido ao dar na praia
E ao recolher o meu próprio corpo de um mar não visse meu rosto
Que morram as flores que meus pés nunca pisaram
E sucumbam as árvores de florestas onde nunca pus os olhos
Que se dissipem nuvens brancas em negras poeiras
Quero a minha vida inteira trazida numa próxima maré
Não aos parcos pedaços que me sobram e são tudo e tão pouco
Quero qualquer ilusão, não a sensação verdadeira
De um náufrago renascer ao retirar-se a si mesmo do mar da morte
Espelhos de vida e morte, de nossos rostos que se entreolham
Um olhar que se perde em algo de eterno que nunca veremos

E minha consciência de tudo é de um tudo que se esvai no tempo
E de um tempo que acaba quando leva tudo a mais certa morte
A um mar que à praia me traz e a meu rosto e todos os espelhos
E neles eu me olho e não me vejo e o que vejo não posso olhar
O que vejo de mim mesmo é um perder-se nas sombras
Um indeterminar-se em longos e insuportáveis silêncios
E um chão que se abre sob meus pés a tragar profundezas
E não há como ver cego de medo um pouco que seja de tanta beleza
Porque em todo silêncio que seja profundo há o que é só tristeza
E depois de tanto silêncio há o extinguir-se de uma última esperança
Que moveria todo um mundo mas nada de tênue em meu ser moveria
Nada de tênue em meu ser para o que eu tenho que sentir
E sentir que sei que sinto e que sinto que sei que vou sentir
Algo próximo ao que tenho que temer todo dia nessa hora inadiável
O tudo que para aqui se volta e vem dar nessa inóspita praia
E assim meu vazio é cheio de tanto de tudo que joguei fora
Estilhaços de todos os espelhos com marcas de sangue de nenhum rosto

E meu rosto é o de um cadáver que recolhe a si mesmo ainda vivo
A refletir-se no espelho irreal a justapor rostos de vida e de morte
E há alguém em mim que naufraga e vive ilhado e não me encontra
E esse alguém sou eu o mar e a ilha e o além e o além do além
E sou também a distância entre esse eu e um outro eu e nenhum dos dois
Distância que cobre universos infinitos e indistintos e impermanentes
Num dos quais sou o que sou e noutro o que não sou eu sou sem ser o que se é
Quando sou somente tudo isso que não sei quando não sei em que universo estou
Nem em que praia ou em que lado do espelho ou qual de seus estilhaços
Quando não sei que rosto eu visto ou que corpo meu recolho em que mar
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 23/09/2009
Reeditado em 22/09/2021
Código do texto: T1827064
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.