Não gosto de pensar para escrever, nem de pensar para nada
Deixo apenas as palavras brotarem selvagens do enorme silêncio
Aliás, não deixo! Elas irrompem de meu silêncio sem pedir licença
Porque nem elas são minhas, nem eu as conheço e tampouco sei quando vêm
Elas não são do mundo nem do desconhecido, elas não são de ninguém
Há muito mais poesia diante dos olhos do que qualquer coisa que saia do cérebro
Há muito mais música no ar do que possa captar essa minha torpe desatenção
Há beleza por trás de coisas terríveis e tanto horror em coisas belas
Acho conforto ao pensar-me um reles grão de poeira num universo infinito
E creio ser muito mais pertinente que sejamos nada no centro de nada
Mas é absurdo que esteja quase filosofando quando queria apenas vomitar verdades
Não assim tão verdadeiras a falar desse asco de vez por outra uma outra vez
Da vida uma coisa assim tão modorrenta, chata, rotineira e sem propósito
Não dormir uma noite sequer e saber que amanhã tem de por a canga às costas
Dar bom dia às portas, falar com as paredes, aos murros que se dá em pontas de faca
Puxar essas tralhas que se nos impregnam no dia-a-dia, essa carga descomunal
E ninguém que haja me explica coisa alguma a respeito de absolutamente nada
Por que cansaço é algo que se acumula e descanso é algo que se esgota?
Por que alegria é algo difícil de conseguir e tristeza sempre nos encontra?
Quem disse que temos que ser felizes? Quem disse que temos que agradecer?
Que há para tornar-nos assim tão felizes senão ilusão? Ou impossibilidade...
Que sentido há em agradecer por tudo aquilo que tenho que tomar de assalto?
Nada na vida me deram senão olhar sobre os ombros, desprezo e pontapés certeiros
Nada me fizeram senão construir em torno de mim adoráveis e magníficas prisões
E nada me disseram o tempo todo senão o que não pode, o que não tem, o que não serve
O que não se faz, o que não se quer, o que não se pega, o que não se pensa e nem se fala
E eu não penso na morte senão como aquilo que se traduz numa absurda espera
E não penso em mim mesmo sem sentir saudade do que nunca fui, do que nunca fiz
Não sou capaz de pensar em nada sem sentir-me envolto desse eterno e infinito vazio
Quantas noites perdi e vou perder ainda para entender a razão de um outro amanhecer!
E se nos acaba o mundo exatamente agora, quem me paga as contas e quem as recebe?
Quem me verifica a correspondência e quem haverá de dar comida ao meu peixe?
E se me enterram no seio da terra, de que me valerão tantos sonhos e planos?
Que importa afinal quem vai estar de verdade consternado diante de minha sepultura?
 
E agora essa solidão, quem se põe fiel ao lado de minha cama e me vela o sono?
 
Em que vou botar os olhos no último momento e como é que vou sabê-lo último?
Não sei representar nenhum papel nisso tudo que ou é tragédia ou é comédia
Não sei quem sou na farsa, nesse mentirmos uns para os outros a todo instante
A vida que eu quero, a que eu tenho, a que eu teria, ou nada disso, não sei qual vivo
A existência é algo que me supõe ou supomos supor algo que possa ser existência?
Quanta metafísica pode haver de verdade na vontade de ir apertado ao banheiro?
Quanto glamour deverá haver em estar há tempos moribundo a morrer no leito?
Ao recolher tantos mortos no campo de batalha, deverei enterrar juntos todos?
Os negros e os brancos, os chineses e coreanos, os ricos e os pobres?
O que eu queria dizer afinal desde o início? Será que alguém pode ajudar?
Qual é a maior fonte de poder, a força ou o conhecimento? Conhecer a força?
Mas não sei com o que devo temperar tanta sabedoria que há por aí. Óleo ou azeite?
Prepara-se frita ou assada? Come-se com vinho tinto ou branco? Ou é de beber?
Que fome é essa então que temos que não se sacia porque nem mesmo é fome?
É só um nome para uma necessidade que nem é da alma, muito menos do corpo
Quanta realidade há em todos esses devaneios? Serão todos os loucos meros sábios?
Inundados de presciência são tão incapazes de ver a mediocridade das coisas simples
Há tanta sabedoria no mundo tão somente para ser guardada em tantas estantes
Mas não há ninguém que possa me dizer para onde vai o que pensei mas não escrevi
Quando derramo sem querer andando na rua discursos mentais que me saem poemas
E os poemas que me saem fazem entrar dor e sofrimento e um tanto de arrependimento
Deveria permanecer calado desde o dia em que nasci até hoje e não pensar em nada
Tem que doer aquelas crianças que me vêm vender balas enquanto tomo cerveja?
Como ousaria dizer-lhes que tanta cerveja é simplesmente para esquecê-las?
E como esqueceria de mim mesmo se essa dor de estar vivo nunca me abandona?
Gostaria de saber a justa medida da escolha entre o que não posso e o que não quero
Seria melhor saber a justa medida entre tudo o que me dão e tudo o que me tomam
E se eu me desse ao luxo de listar tudo o que quero esquecer não sei o que restaria
O que deveria haver para ser lembrado, qualquer coisa que me apavora ou enoja
Qualquer coisa que me afasta de tudo quanto é vivo e pulsa e anda sobre a terra
Talvez me aproximasse das pedras, me afundasse nas cavernas, sumisse no mar
Porque tudo o que penso é muitas vezes tão denso que me dilacera e transborda
E para fora de mim nada existe que seja meu e nada eu sei ou sinto ou percebo
Fora de mim há tanto quanto há dentro, mas esses contrários não se anulam
Por isso esse dilaceramento, esse ter dois lados diante de dois lados da mesma coisa
Por isso esse grande medo diante dos muitos lados que muitas coisas sempre têm
Esse espanto diante de cada ângulo novo, um certo asco diante do impensável
Essa náusea compreensível diante do dia novo que principia quase que inconcebível
Vontade incontrolável de voltar a dormir no profundo e insondável de si mesmo
Por isso essa inquietação comezinha diante de dúvidas insignificantes e inúteis
Quem somos e para onde vamos se de onde viemos não sabemos quem nos criou?
Haverá um deus a reger esse caos que é a expressão mais nítida da precisão do acaso?
Não faço a mínima idéia da necessidade de haver regência ou deus ou qualquer coisa
Qualquer coisa que me justifique não pensar nunca e não querer nenhuma resposta
Nenhuma revelação me trará ilusão maior do que a que tenho e que me serve tanto
E tudo o que não for necessário será tão somente um simples e puro acidente, só isso!
Todos os mundos, o universo inteiro e a eternidade, a vida e a morte: acidentes!
 
Será necessário haver tanto amor impossível? Um acidente, o pior de todos. Amor!
 
Acontece que a cada dia mais a vida vai ser sempre essa coisa por vir que não vem
E vou estar à beira de todas as estradas olhando angustiado todos os passantes
Nenhum rosto que eu conheça, nenhum em que reconheça meu próprio rosto
Por vezes posso me sentir tão cansado das pessoas quanto me sinto de mim mesmo
E nada me apetece, nada me tranqüiliza, nada serve de alento para essas duras horas
E buscar uma razão para estar vivo é querer encontrar exatamente o quê? Silêncio!
Vou sentir então sem perceber essa tristeza como mil adagas fincadas nas costas
Vou me ver sempre prostrado e desacreditando no absurdo de tudo o que é real
Tudo o que é palpável nunca nos serve de fato, nos engana a ilusão do desejo
Então sair a andar a esmo, nunca sei de onde vim, os caminhos são falsidades
Péssimas escolhas inadiáveis esse nunca saber agora o que é preciso querer
O que nós queremos é tão somente querer alguma coisa que nos iluda o tempo todo
Que nos afugente o medo de cada momento interminável dessa vida mal resolvida
E agora tudo o que quero dizer vai se dissipando numa tola hesitação e eu sei: é amor!
Um amor novo que se inicia tão cheio de medo e cuidado e só quero a luz dos olhos
Quero o silêncio porque quando quebrado pelas palavras acaba todo o mistério
E qualquer fascinação vai durar tão pouco, tão menos que a efemeridade da vida
Sei que quando olhar seus olhos de verdade minha alma vai saltar para fora do corpo
E serei como morto vazio de palavras e pensamentos, sem destino nem futuro, nada!
E o único medo possível que vou sentir é o de ter todos os medos, os maiores
E nada mais me assusta, nem você, só não posso permitir perder todos os medos
Nem o maior de todos a guiar meus pensamentos na solidão e meus passos na escuridão
E tanta luz nos seus olhos! Tanta luz! Somente essa luz me arranca o maior dos medos
E agora tudo o que quero dizer de verdade vai assim tão aos poucos se derramando
Vou tropeçando nessas mesmas palavras, correndo para o nada, e eu sei: é amor!
Talvez eu devesse mesmo ter permanecido calado, o tempo todo, e não mais voar
Milhões de janelas me espreitam silenciosas e com asas quebradas venho dar na sua
Para não entender mais uma vez o destino, aceitar o desespero e me ver preso
Por minha própria vontade pressurosa ir ficando discretamente desde sempre
Como um fantasma ao seu lado, uma sombra dos seus passos na madrugada
E mesmo que você nem possa notar, seguir sua sombra por todos os caminhos
Quem me falará dessa luz que se interpõe entre dois olhares perdidos que se encontram?
O que haverá de ser capaz de quebrar o enorme silêncio? Sempre o enorme silêncio!
Quanta luz será necessária para iluminar-me os passos em tantas madrugadas?
Quantas janelas terei que fechar para não voar e quantas portas precisarei abrir para entrar?
Estou cansado, não gosto de pensar, nem gosto dessas palavras que irrompem do silêncio
São selvagens e são sim minhas e as conheço e sempre posso ver quando elas vêm
É sempre quando a solidão fica insuportável e o silêncio interminável
Quando todo o grande medo fica compreensível, nítido, e por isso é dissipado
Quando toda a escuridão é rompida por algo que por engano penso ser a aurora
Mas é meu olhar perdido que encontra toda a luz de seu olhar que se perdeu...
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 23/09/2009
Reeditado em 22/09/2021
Código do texto: T1827034
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