"Zoo"
O sol que batia em meu braço esquerdo tostava minha pele, queimava e era uma sensação de tortura plena. Eu sorria por fora, mas por dentro: gritava! O trânsito, eminente como sempre, eliminava qualquer possibilidade de satisfação; mas era preciso lá entrar e resgatar minha culpa, a minha ausência.
Deixei em casa a minha responsabilidade; amontoei meus papéis e decidi que hoje, unicamente, eu seria outra pessoa.
Eu me sentia estranha em meio à multidão alucinada. Todos pareciam felizes, mas eu sei que cada um; sem a hipocrisia de uma mentirosa, possui algum pensamento distante daquele momento. Mas os meus pensamentos eram todos visíveis. Sorria mecanicamente, andava movida pela multidão –que também agia instantaneamente.
Pais exaustos carregavam seus filhos nas costas, vendedores afoitos gritavam suas ofertas, e o macaco pulando de galho em galho... (lembrei da Clarice, e quase chorei sentada na Alameda Leão).
Eu segurava uma incontida alegria dentro de mim, enquanto observava as crianças eufóricas assistindo ao lento desfile daquela massa enrugada e ressecada, o elefante. Já eu, com o olhar de uma assassina de lembranças, o olhava com repúdio e pensava: “ah, como pode ser tão grande e tão docemente quieto”; esquivei-me diante daquele melancólico pensamento, e imaginei o acasalamento daqueles mamíferos.
O calor era tanto, que a fadiga havia tomado conta dos animais: o leão abanava o rabo, deitado de costas para a multidão: pouco caso notório. Os gorilas, amontoados, riam da cara dos transeuntes a se espremerem em busca de um lugarzinho para o show, mas o show não ia começar; não hoje. Os tigres amavam-se, numa mútua sem-vergonhice plena (fiquei longos minutos apreciando a cena) deixavam os pais em polvorosa, mas as crianças – inocentes –apressavam; ainda outros animais aguardavam a visitação.
Uma fila espantosa se formava na Casa dos Répteis, vinte minutos suados para dois minutos de vistas a dois inertes jacarés: um olhava fixo alguma coisa que na água pairava, o outro – de costas para os visitantes, ensaiava uma estátua eterna.
Via de duas mãos, eu era uma velha resgatando minha infância; eles –os nossos sonhos materializados em pequenos seres humanos – a própria infância. Compensada pela alegria daqueles olhinhos inocentes; repousei-me no cotidiano de uma vida plenamente satisfatória.
Ontem, nascida há trinta e sete anos, apaguei os pesadelos de um passado doloroso. Hoje, renascida na infância alheia, almejei os sonhos de um futuro tranquilo.