Deixe-me só

Como eu lhe disse, minha alma está cansada e quer descansar. Deixe-a quietinha, a sós, num canto somente a observar. Deixe-a rever os homens e tentar, mais uma vez, compreendê-los.
Ela está toda agoniada, nem sabe se chora ou se ri. Está toda equivocada, tentando organizar pensamentos, mesmo sabendo que eles são inorganizáveis. Deixe-a tentar até cansar-se novamente.
Talvez ela aprenda, senão repete o erro até que a roda da fortuna pare de girar. Mesmo não sendo a vez dela.
O que é que temos de aprender que é tão difícil assim?
Por que insistimos sem ter resposta?
Quando foi o tempo de perguntar?
E quando será a hora certa para tudo?

Deixe minha alma respirar, ela está sem ar, coitadinha. Ela que não sabe que já sabe o que nem sequer tem idéia está toda troncha, desgastada, perdendo o brilho, o viço... deixe-a morrer um pouquinho, quem sabe ela renasce e vive tudo de um modo diferente.
Não quero mais repetir a ladainha. Quero novos rumos, quero a juventude dos pássaros quando voam fugindo do frio. Quero a determinação dos salmões subindo o rio para a desova.
Quero mesmo é acreditar que tudo teve e tem um propósito, mesmo que eu não saiba qual é. Quero crer mais, eu que acredito em tudo.
Quero desmistificar as cores do céu num pulo de pára-quedas e poder sonhar com as colinas dos Pirineus ouvindo o coro dos anjos celestiais... ouvir um coro, vozes estranhas. Sons que não decifro mas que me trazem a paz ao coração. Aquece.
Quero poder esticar de novo os braços e num abraço ultra-apertado tirar minha alma desta solidão sem sentido e pentear os seus cabelos. Pintar um sorriso de Da Vinci em seu rosto e incorporá-la de novo ao meu corpo... sentir a vida pulsando e a conexão se integrando. Um só. Uno.
E então abrir os olhos, deixar de sonhar com o que não faz parte desta vida e estabelecer uma meta que leve ao coração. Acender a lareira, pegar um balde com pipocas, um vinho talvez acompanhe e olhar o céu, espiar as estrelas e encontrar bem lá, ao longe, um outro sorriso a acenar, pedindo calma, pedindo determinação... que tudo está no lugar em que devia estar.
Abrir a janela, sentir a brisa da noite, o pio da coruja e um calafrio a percorrer a alma.... este é o momento e sempre foi o lugar.


Texto publicado no livro Para Sempre,
de Márcio Martelli, Editora In House (2006).