[Compasso do Cotidiano]
Os carros seguem, passam numa velocidade
bem maior que aquela sinalizada nas placas —
"ainda há de faltar bobos neste país de espertos!"
Ah, não vai não... tem eu aqui, respeitando limites...
A menina pobre, empregada da lojinha,
varre, caprichosamente, a calçada estreita;
de que vale uma vida jovem que varre calçadas assim,
numa manhã ainda fria — ah, as dores da subsistência...
Que sei eu, que sei eu?! Vem-me à mente a frase antiga:
"a vida é curta em relação ao que se dever saber!"
Uma pilha de fragmentos da calçada arrebentada
por uma velha árvore incomoda os transeuntes;
ficar velho dá nisto, em atrapalho na vida!
Olho, e pondero que a vida é muito, muito longa!
Ao longo da grade do jardim da casa simples,
a calçada recobre-se de folhinhas esmagadas,
ali, naquele verde-morto, está o outono tropical,
e ano que vem, haverá outro outono nesta calçada;
mas cá neste carro, estou eu, no outono da vida —
é um só! — não haverá de se repetir...
A mulher que dirige seu carro à frente do meu
segue numa velocidade muito baixa para a rua,
por isto, eu e ela levamos uma buzinada do carro
que vem atrás de mim — eis o “sujeito cotidiano” típico! —
afinal, não se pode exigir que todos pensem na finitude...
Adiante, o trânsito raleia, acalma-se um pouco,
posso ver como a manhã está linda, linda,
e torno a pensar que a vida é muito curta!
O tirador de vantagem, o apressado, o antiético,
em suma, o “cotidiano” típico que buzinou lá atrás,
está agora encaixotado no trânsito parado do farol —
olho, sorrio por dentro — a vida de crimes compensa?
Devíamos todos fazer um pacto de imoralidade?!
Resta-me seguir para cumprir mais um dos meus
últimos dias de trabalho, antes da liberdade...
Torno a praguejar: trabalho, só trabalho mesmo,
é um castigo: se eu não precisasse comer,
ou, se pelo menos eu pastasse e ruminasse,
jamais me entregaria ao "trabalho-só-trabalho"!
Ganho a estrada, olho, e a estrada é nada, nada;
só distância a percorrer, todos os dias, todos os dias,
as coisas se esvaziando de sentidos para os meus sentidos,
o meu tempo, uma relação que se esvai, se esvai...
Mas eu sei: há um número inteiro de batidas do coração —-
nunca ouvi falar de alguém com meias-batidas cardíacas! —
sei que eu não posso contá-las, mas sei que totalizarão
um número inteiro, não fracionário, não transcendental, afinal!
quando o meu total chegar, tirarei a prova final: Deus não existe!
[Conversa oca, miolo de pote — de onde me vem este vezo de não dizer nada, nunca?!]
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[Penas do Desterro, 10 de agosto de 2009]