[Sentidos em Transe]
A cena segue o ritmo do sol — na verdade, é mesmo iluminada pelo sol poente — eu sei bem! E começa precisamente [para o corpo, isto é até preciso demais!] entre 17h05 e 17h10, quando, repetindo o hábito que vem desde os meus cinco anos, corro para o banheiro mais próximo; se não tiver banheiro, um muro, um matinho à beira da estrada, um pedra maior; qualquer coisa suficiente para um disfarce que todos sabem do que se trata, para o meu "xixizinho das 17hs" — "nunca mudei: sou assim, e até hoje, nunca morri de ser assim!"
[Nessa hora lenta, eu cesso tudo que estou fazendo... bate um sono, um sono, mas um sono de até dar vômito! Se estiver dirigindo, tenho de parar o carro. Pois então...]
Satisfeito, aliviado, e já mais calmo, preciso por que preciso de um lugar para o meu "transe das 17h15", pura influência do ciclo do sol! E tudo, a cena inteira, será mais bem catalisado se estiver ao meu alcance uma pinguinha marelinha, de Minas, é claro; e aí então — o transe dos sentidos! — com pouco, chumbado do dia longo, e agora também da pinga, estou, inerme, na cozinha do meu sitio, sentado diante da mesa nua. Ao longe, toca a sirene do curtume, e logo depois, a da triparia fedorenta. Começam a vir, trilha acima, os lutadores cansados do dia estafante — a sua caminhada lenta me desola ainda mais...
Pela janela, vejo o corujão branco que aparece todas as tardes, e vez por outra, pia, lúgubre, pousado no toco seco do eucalipto. Ao fundo da cozinha fumarenta, o fogão de lenha fumega devagarinho, devagarinho a lenha cascorenta vinda do cerradão logo acima da casa. Nas traves escurecidas, picumãs oscilando levemente ao ar quente que sobe do fogão. A cachorrinha esperta deitada aos meus pés, mal se move, está em transe também; ela cisma, como eu — eu cismo não como o caboclo do velho poema, que eu não sou isso, mas como um sertanejo que olha longe, e sem sofrimento algum, o cair da noite. Hora mágica em que as criações se recolhem; muda até o canto dos pássaros...
E a cena segue... Agora, o sol já vai sumindo, sumindo... sumiu! Pronto - some o sítio, a coruja voa do toco, as sirenes há muito já se calaram — cessa o cisma do sertanejo, fim do “transe das 17h15”! Durou uma meia-hora? Sei lá... ainda não medi...
Volto de lá... entro no carro, e já vejo as luzes do painel, faço roncar o motor, ligo o player; a minha mão busca, instintiva, a seleção de Blues & Jazz — chegou e firmou-se de vez o escurão da noite! É hora de outros demônios — esses, mais urbanos, mais doidos — entrarem no meu corpo... Estar só, nesta hora – simplesmente horrível! Nesta hora, as mãos macias e carinhosas de uma mulher, me levariam a outro transe - bem diferente, por certo!
Quem sou eu — aquele nunca cessa de vir de lá, ou aquele que enlouquece de solidão nestas noites de Blues & Jazz?
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[Penas do Desterro, 02 de agosto de 2009]