Entressafra

Temo não conseguir desta vez, afinal não é sempre que tudo dá certo. É certo que tenho tentado, que tenho perseguido ideais, mas o que mais me resta a não ser descobrir, por novas vias, acessos que me levem a um lugar diferente...

Sou todo entregue a estas coisas que me levam embora, mesmo quando a minha maior vontade é ficar aqui, neste mesmo lugar.

Tão preso a lembranças...

Tão sem vontade de sorrir...

Deixando as lágrimas brotarem como brotam ervas daninhas no quintal que um dia tive e no qual brinquei.

Não há mais quintal meu, nem moro mais na mesma rua e bairro. Eu cresci e o tempo, por diversas vezes, esqueceu-se de me dizer o que aconteceu e nem percebi... segui em frente um tanto oco, mas nem me dei conta.

Meu caminho nunca foi meu.

Eu não sou daqui.

Pertenço a uma tribo que um dia habitou estas terras e que se foi há muito. Sobrou a mim, um mutante em extinção. Desabrigado. Fora do seu tempo e exilado. De muitas Capelas.

Procuro conduzir-me sem cometer os mesmos erros e eles voltam a todo instante para me sacudir e seduzir. Eu sou outro. Um outro que não dá trela, nem fica batendo papo na esquina, em bares onde sequer pensaria em entrar hoje, nem mesmo tentei entender o motivo.

Poetizo em livrarias e saraus a minha pequena ira: a de não entender nada, absolutamente nada.

E vou assim caminhando sem proteção alguma, querendo carinho, atenção, paixão e sexo. Sem amor nenhum, somente por pura diversão. Não pretendo ver você amanhã cedo, nem quero dividir a minha cama. Ah, eu quero o puro deleite das paixões desenfreadas, aquelas que duram o tempo que têm de durar. O suficiente.

Não quero ter que me preocupar com presentes, nem data. Eu quero a sorte de um amor tranqüilo. Mordido, mofado, escandaloso, sem regras.

Quero apenas ser eu, e quero que você seja você a toda hora.

Quero bater na sua cara, sem força, lógico – não pretendo lhe machucar – e quero que revide, na mesma medida. Gritar! Gritar que somos loucos e colocar no último volume a sonata de Schubert, aquela com a letra da Mathion. Aquela mesma. Ouvir por horas e tornar-me um pedaço daquela partitura e ser tocado por seu instrumento preferido: um violoncelo.

Passar várias madrugadas vagueando pelas ruas de Paris, pelo beco, pela Place de la Concorde, Marseille, Bourdeaux, Versailles, voltar a Montmartre e e ali ficar, parado, na esquina, vendo a prostituta esmiuçar seus trocados conferindo a féria da noite. Será que precisa de mais um freguês? Ou já basta?

Ir, aos poucos, sumindo na madrugada, zumbindo apenas em um ou outro ouvido mais apurado. Até desaparecer.

No Le Monde da manhã seguinte estampa-se a manchete: Sonata de Schubert foi ouvida durante a noite e sumiu na madrugada. E Mathion lança o seu sorriso tímido e pensa no que fez e no que a levou a fazer aquela letra para aquela melodia.

E eu continuo a pensar no que me sobrou...

E continuo a não entender nada... absolutamente nada.

E continuo a chorar impiedosamente.

Texto publicado no livro Sangue: literatura e outras loucuras, de Márcio Martelli, Editora In House (2008).