Apenas escrevo
Escrevo agora como quem pretende se limpar de uma sujeira que há muito se acumulou no corpo. Eu me banho com as palavras que se encaixam neste texto e me perfumo com a poesia que exala, intoxicando-me.
Inerte, absorto, vou consumindo todas as letras como se fossem uma única palavra, um só pensamento.
E insisto em escrever como quem diz: não tenho rumo, não tenho idéias, não tenho forças, não amo ninguém, não odeio... apenas escrevo!
E devo continuar a escrever até que olhe para o texto e diga: pronto!, agora posso enviar para que ela aprecie e me responda, com sua rajada de sentimentos que me embriagam, como se fosse um decreto, uma notícia, uma lei... que sei, ousarei transgredir.
Mas, se assim escrevo, é porque existe quem leia as barbaridades que fluem de minha mente confusa e que me deixam a pensar por alguns segundos... Isso mesmo! Alguns segundos. O tempo necessário para que eu possa fazer a ponte entre uma linha e outra, uma frase meio dúbia e uma verdade absoluta.
Serei eu um escritor de palavras frívolas ou almejo fazer as lágrimas se debulharem sobre as faces de meus leitores?
Repito, apenas escrevo...
E se escrevo tanto assim, não acabo me repetindo por um só momento?
Estou enlouquecendo!
Estou fatigado!
Estou no afã de colocar neste texto aquilo que não quis falar para ninguém, inovar não ousei, revelar não pretendi e agora: eu me exponho!
Exponho-me e banho-me à luz de um abajur que invade meu quarto com sua pouca luz deixando meus pobres olhinhos a tentar enxergar o papel que minhas mãos preenchem sem cessar.
Existe um Deus para as parcas palavras que aqui revelo?
E se existe esse Deus, como se chama? Por que não vem a mim agora e me abate com a sua fúria santa e enlouquecida de mim mesmo, por somente tentar ser aquilo que acho que nunca serei?
Escrevo apenas por puro deleite de minha alma. Quero aportar aonde ninguém aportou - isso é impossível - e quero ver as saias rodadas que escondem o seu pudor. Eu sei onde você mora! E também sei como chegar até você...
E também sei que ao findar esta página estarei com a alma lavada em seiva de alfazema, perfume barato, presente de divindade, que me acalma... que me acalma... que me acalma...
Saio do texto mais leve. Deixei a fúria se lamentando e parto para uma outra praia que não revelarei. Somente em meus sonhos a verei e tentarei explicar. Foi tarde, é muito tarde para nós dois.
Prefiro ficar aqui escrevendo enquanto a madrugada não chega e ainda não tenho sono. Estou acordado mas não estou vivo. Estou numa espécie de transe onde transito entre mundos e de cada um absorvo um pedaço, transmutando-o em versos. Eu devoro mundos e a cada instante me sinto devorado por todos os cantos por onde passei.
E por lá ficam as partes, espero eu, que não devem mais seguir-me nesta jornada. A César o que é de César.
Devo ficar aqui escrevendo até que a inspiração pare.
Até que o mundo pare.
Até que me sinta em paz comigo mesmo.
Até que meu coração volte a bater e eu entre em sintonia com tudo o que se passa à minha volta.
Então eu poderei dizer sobre tudo o que vivi.
E a minha real testemunha será a minha escrita.
Por isso, escrevo...
Texto publicado no livro Sangue: literatura e outras loucuras, de Márcio Martelli, Editora In House (2008).