Sobre, verdade e consequência

Era manhã ensolarada de sábado e era também o dia do encontro: 10 anos após a formatura do ensino fundamental. Reunião de amigos de infância, que praticamente cresceram juntos e se perderam em algum momento da vida. Cada um pra um canto. Estudando algo diferente, formando família, terminando namoro, anunciando noivado. E aquele era o dia de encontrar pra matar saudade antiga. Pra falar de coisa boa. Pra dividir as conquistas e as derrotas vividas em 10 anos, e que não foram compartilhadas, como antes eram. Encontrar pra recuperar parte desse tempo perdido na gente. E por isso, o gostinho daquela manhã era diferente dos outros, tinha mistura de ansiedade com uma baita felicidade que resultava num sorriso estampado no rosto desde a hora que o relógio anunciou o início do dia. Nem teve tempo pra hora do mau-humor, normalmente a primeira hora do dia: essa nem teve vez de se mostrar hoje.

Começar o dia cantarolando era raridade na vida de Davi. E te contar que Davi não havia se tornado uma pessoa fácil. Tinha aparência de um homem 10 anos mais velho, trabalhava 13 horas por dia e não descansava nos finais de semana, estava solteiro e tinha ressentimentos de seu último namoro: guardou pra si toda mágoa de uma convivência que não deu certo e vivia em pleno estado de fotossíntese: inerte a tudo que o rodeava. Tinha cara de poucos amigos, e realmente tinha poucos. A grande maioria, estaria reunida no encontro de hoje. Era o dia em que Davi poderia aliviar toda pressão daquela vida rotineira e amargurada. Onde teria a chance de tirar a máscara que vestiu para mostrar aos outros que era chato, antipático e de coração-frio. Pessoa essa que não era Davi, não era mesmo. E hoje ele poderia arrancar a fantasia e voltar a ser ele mesmo, perto de quem realmente o conhecia. Esse era o motivo de toda aquela euforia que Davi sentia há alguns dias, pela proximidade do encontro.

Emanuele também acordou ansiosa. Também não era a mesma de 10 anos atrás. Trocou inocência por um olhar de luxúria e sorriso sem-vergonha. Não tinha mais pudor, e a doçura que guardava ficava bem escondida para que ninguém desconfiasse que ainda existia. A vida lhe deu algumas pancadas, e ela aprendeu que assim, era mais fácil. Tinha necessidade de se impor, e a única forma que encontrou foi se exibindo, literalmente. Valorizando sua beleza, colocando carne a mostra e negociando seu preço, dependendo da oferta inicial. Pra ela, qualquer um tinha seu preço. Acordou bem disposta, tomou banho como se quisesse arrancar a pele, ou nascer novamente em outro corpo. Desejava morrer pra se ver livre daquele monte de pele, osso e carne. Sua a’lma queria mais do que o corpo, mas era o corpo quem mandava em Emanuele. E o que ela mais queria naquele dia de sol era saber o rumo que cada um dos seus, havia tomado. Queria saber se a Patricinha que sentava na frente caminhou pro mesmo lado dela. Queria saber se o Nerdizinho que reclamava da bagunça do pessoal do fundo ficou milionário e menos feio. Queria saber se as pessoas esforçadas se deram bem de algum jeito. E queria muito saber como estava a vida da galera do fundão. Ela queria comparações. Emanuele necessitava de comparações. E ao mesmo tempo, de conforto. E de olhares amigáveis, e não os olhares que recebia todos os dias de sua vida: os de puro desejo-barato.

Chegou a grande hora. E o encontro foi regado a muita saudade, muita lembrança de histórias que faziam todos caírem na gargalhada, em histórias que muitos não conheciam e compartilharam naquela hora de descontração. Todos pareciam bem, muito bem na verdade. Todos empregados, exceto Fábio que continuava tentando a vida de ator e não era lá um assalariado, se assim você entende. Fábio tinha talento, mas não tinha quem indicasse. Então, continuava na luta e devagar construía seus degraus. Todos com sorriso no rosto e a maioria pensando em formar família em breve. Éramos adultos, enfim! Foi quando Rogério que parecia nunca ter passado dos nossos saudosos 16 anos, disse: - Galera, que tal relembrar os velhos tempos? Eu sugiro uma rodada de verdade e conseqüência. Pronto. Era tudo que o pessoal precisava pra cair no riso e não querer parar mais.

- Quantos anos você tem, Rogério? Você não muda nunca, Zé. Ta louco, camarada. Olha pra minha cara barbada e vê se tenho cara de muleque ainda. Verdade e conseqüência? Ai céus. Eram os comentários que Rogério escutava.

Ele insistiu: - Duvido que ninguém queira relembrar. Duvido. Emanuele foi a primeira a se pronunciar: - Eu topo. E no meio de todo aquele alvoroço, finalmente se renderam. Na verdade, todos em seu íntimo gostariam de relembrar, mas não tinham coragem de admitir. Até que admitiram.

E a conversa passou do tom de brincadeira pro tom de seriedade. Todos começaram a falar de suas vidas e dos problemas e compartilhar os acontecimentos com os demais. Nem tudo eram flores, como parecia. Era abraço pra cá, risada com gostinho de lágrima pra lá, gargalhadas sem fim e o aconchego que Emanuele e Davi precisavam aconteceu naquele momento. Revivendo o passado: brincando de verdade e conseqüência. Trocaram olhares: Manu e Davi. E sorrisos. E palavras silenciosas que diziam: Eu entendo você. O dia foi passando com gosto de saudade, porque a vontade era de não mais ir embora. A vontade de todos naquele salão, era não largar as pessoas que mais as conheciam. E conheciam mesmo. Não importava o tempo, à distância, o rumo oposto, eram as mesmas pessoas: Pessoas que se gostavam, simplesmente pelo gostar. Não pelo carro do ano, nem pelo emprego no alto escalão da empresa e nem porque eram bonitos. Essa era a mágica daquela turma. Amavam-se pelas pessoas que eram, e não pelo que conquistaram depois que resolveram crescer.

O dia acabou. A despedida foi bonita de se ver. Regada a muito sorriso, muita lágrima de uma saudade que daqui a pouco apareceria e promessas de não mais se distanciarem tanto. As promessas eram pra não deixar o tempo consumir toda a vida, pra não deixar a rotina tomar conta, pra não esquecer do que realmente importa na vida: as pessoas. E a convivência com elas.

Emanuele e Davi se olharam e sabiam que a festa não acabava ali. Emanuele pegou carona com Davi e foram pra um barzinho aconchegante e discreto. E o mundo parou. Ela se abriu por inteiro pra Davi, como se nunca tivessem se distanciado. Como se o primeiro-amor nunca tivesse acabado. Como se os sonhos da infância ainda existissem dentro dela, e existiam. Davi se rendeu ao perfume de Emanuele e as palavras saiam de sua boca com uma facilidade que ele desconhecia. Chorou os 10 anos de angustia e medo de viver que tinha. Emanuele tinha o aconchego misturado ao seu colo, e daquele lugar, Davi não queria mais sair. Não queria parar de olhar praquele sorriso. Não parava de desejar a presença dela. E Emanuele percebeu que pra Davi não importava nada além da alma. Além dela. Aquele dia foi realmente o melhor dos dias. Muito além do que esperavam. Saíram de lá, pra casa de Manu, pra nunca mais separar. Promessa cumprida.

Glau Ribeiro
Enviado por Glau Ribeiro em 26/07/2009
Código do texto: T1720144
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