Conto de Fada ¹

Chegou do trabalho com cara de poucos amigos. Semblante cansado, uma tosse que não queria silêncio, garganta que se arranhava inteira com cada barulho, dor de cabeça por conta da tosse que queria fazer festa, contravontade do mundo. Ô tosse idiota, pensava. Vê se hoje é dia pra aparecer. Se é que existe dia bom pra fazer visita. Sua casa, naquele dia, parecia excessivamente aconchegante. Era tudo de que ela precisava. Tirou a roupa como quem arranca um chiclete do sapato, suspirou depois de um banho demorado ao som de The Cramberries e foi arrastando a chinela pra cozinha. Precisava comer alguma coisa, beber outra coisa e se encher de chá praquela tosse mudar de vizinhança. Pra um lar bem longe daquele. O silêncio da casa e o barulho do seu corpo começaram a irritá-la, e a fazer com que ela quisesse dormir pra não ouvir o próprio corpo reclamando de dores indesejadas pela sua’lma. Uma mistura de preguiça e tristeza invadiram as janelas da casa quando ela começou a preparar uma comida qualquer só pra não se automedicar em jejum. Vai que o remédio ataca o estômago, ai ferra tudo.

Ela percebeu que queria mais vozes ecoando pelos cômodos, que não queria ficar sozinha com aquelas dores inconvenientes, que queria mimo e alguém que matasse suas vontades egoisticamente. Alguém só pra ela. Dela, por inteiro. Pra levar chocolate quente na cama, pra fazer sopa e assistir TV junto dela. Pra dar colo e fazer cafuné na hora de dormir. Pra acordá-la de madrugada pra tomar remédio e pra lembrá-la de não ir ao banheiro à noite com pé no chão. E enquanto a água fervia pra fazer o chá ela pensava em como ela desejava esse alguém, e não havia se dado conta. Ou o orgulho era maior e ela não queria admitir que precisava daquele alguém. Aquele que a fizesse flutuar, que fosse capaz de fazê-la sorrir mesmo nas piores situações. Estava faltando alguém, mas ela não ia admitir. Só o pensamento voava pela cozinha, mas nem as paredes da casa ouviriam uma confissão. Nem naquela noite, ouviriam uma confissão.

Desistiu do chá, e foi fazer um chocolate quente. Desistiu da comida e não comeu nada. Tomou um xarope qualquer. O mesmo que tomava toda vez que a tosse chegava. Foi fechando as janelas como se quisesse fugir do vento, do barulho, das pessoas e dela mesma, pra não admitir que sentia faltas. Abraçou a cama com vontade, mergulhou nos travesseiros e correu pra debaixo do seu edredom. Ligou a TV e ficou passando os canais sem achar nada que chamasse a atenção. Ficou lá um tempo: assistindo fofoca dos famosos, pedaço de filme repetido, jornal, Discovery de alguma coisa, desenho animado. Nada de interessante. Nada ia ter graça naquele fim de noite. Era fato. Ela tinha fechado a porta pro mundo. Fechou as janelas pras pessoas. E não admitia que estava morrendo de vontade de abrir tudo de uma vez. Pra [se] entrar logo. Depressa.

Começou a pensar em Caíque, seu vizinho. Em como ele era gentil abrindo a porta do elevador, deixando-a sair na frente, abrindo a porta do hall, perguntando como estava a vida, reclamando do cachorro do vizinho de cima, perguntando se o latido constante dele a incomodava também. Certa vez, voltando do supermercado, estava cheia de sacolas na mão. Eram tantas que nem conseguia andar direito, estava toda torta, esbaforindo de raiva e o pensamento era: porque até hoje eu não comprei um carro! Porque, Deus!? E chega Caíque sorrindo, pegando algumas sacolas e oferecendo ajuda imediata sem querer saber de recusas. Colocaram as sacolas em um canto qualquer da cozinha e sentaram para tomar um café e bater papo descompromissadamente. Caíque tinha um ar de sedutor barato, misturado com menino inteligente que sabe o que faz e sabe o que quer. Enquanto ela preparava o café, o pegou algumas vezes olhando descaradamente para seu decote. Logo em seguida, seu rosto se refazia e o semblante sério ressurgia como num passe de mágica. Ela ria discretamente, como se quisesse que ele não percebesse, mas ele percebia. Caíque era homem misterioso. Discreto. Morava sozinho, também.

Alguns cafezinhos aqui, alguns encontros ao acaso ali, alguns olhares de canto e sorrisos que despiam qualquer timidez vestida e ela conheceu o verdadeiro Caíque. O que pegava fogo, facilmente. O que tinha cara de sério num segundo e no outro acabava com ela só de olhar. Ah, ela conhecia bem. Era só tentar acender uma faísca que ele pegava fogo por inteiro. E o que era esporádico, foi se tornando hábito: a noite estava silenciosa, solitária e ele aparecia com cara de cachorro sem dono, carregando uma garrafa de vinho nas mãos, e um sorriso sem-vergonha no rosto. Da mesma forma, se a carência tomasse conta dela, aparecia vez por outra na porta de Caíque com alguma desculpa esfarrapada do tipo: meu chuveiro não quer ligar, dá uma olhada pra mim Ique. Puro charme barato que dava certo.

Ela se escondia do mundo, mas se mostrava de vez em quando para Caíque. E naquele dia, onde tudo que ela queria era ter companhia, pensou em Caíque. Mas diferente do usual, não queria bater na porta dele. Não queria que ele soubesse de um lado menina dela. Porque naquele dia, ela não queria fogo. Queria só aconchego. E não sabia se Caíque estava disposto a dar um passo desse tamanho. Com ele é só diversão, ela pensava. Esquece esses pensamentos idiotas e se concentra em dormir, porque sua sexta-feira não promete nada além de um chocolate quente e uma reprise de um filme romântico-idiota qualquer. Não vou procurá-lo, hoje. Não vou. [...] Talvez, quando a tosse passar. Talvez. – ela disse, e foi dormir.

Glau Ribeiro
Enviado por Glau Ribeiro em 26/07/2009
Código do texto: T1720140
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.