BAIRRO DE LATA
No fim de um estreito carreiro desembarca um mundo perdido.
Uma floresta de tábuas eriçadas que se espreguiçam na miséria, dão abrigo aos homens mudos de sonhos.
A arquitectura desordenada dos telhados de zinco merenda a madeira nua que treme de podridão. Em cima deles um sem número de inutilidades; pneus, tijolos e lixo reciclado pelas mentes que necessitam de guardar alguma coisa para enganar a desilusão.
Não se ouvem pássaros, apenas gritos e rumores das mulheres que dissecam cada pormenor da vida alheia. Estas não usam cremes, os seus cheiros são meteorológicos, pois o pouco dinheiro que lhes resta serve para saciar a fomeà realidade.
As crianças correm, são “livres”, embora habituadas a sentir o álcool enfurecer as mãos dos pais sem razão plausível. Joga-se à bola, ao berlinde e às escondidas. Realizam-se os jogos olímpicos várias vezes por mês, com prémios de cortiça e taças feitas com garrafas de
óleo, cabos de vassoura e pratas retiradas dos maços de tabaco já consumidos.
Os homens embriagam os dias de esquecimento, os filhos engarrafam a
infância na revolta.
Aqui abrem-se as portas à memória.
O tempo acende o sono dos sorrisos e a cada dia que passa nascem ilhas.
Texto do livro "O áspero hálito do amanhã"