Folha branca

DIÁLOGOENTREUMHOMEMUMMUROEUMTERCEIROOCULTO

Um Canto a Zaratustra

"Ele era como eu, encostado a um muro, em silêncio, em silêncio, quase chorava. Encostado a um muro, em silêncio e chorava. Uma sombra corria pela manhã e ele vinha sem ninguém encostar-se àquele muro, dar o corpo à sua sombra, pela manhã e chorava, chorava a sombra, um corpo encostado a um muro longo, um muro ladeando uma rua de alcatrão escuro. Sempre ali, na manhã, sempre com as árvores em frente ao muro, sombras verdes, o outro lado da rua, o alcatrão escuro por onde corria a manhã e a luz, a luz dele, o silêncio dele, o rosto e lágrimas para experimentar as lágrimas de um homem, um homem que vinha pela manhã, ninguém, vinha pela manhã encostar-se ao muro branco, em silêncio olhava a sombra de si mesmo formar-se em círculo no alcatrão escuro. Em pé, só, enquanto a manhã corria até à luz do sol mais alto, nenhuma palavra, palavras silenciadas como a respiração para sentir o que se sente quando se sente. Silenciado em silêncio, o halo da luz e as pálpebras que se fechavam na intensa luz. Havia outras ruas, outras árvores. Muros para um corpo se encostar sem o peso do corpo, a luz descia pelo vento análoga à luz da manhã como todas as manhãs mergulhadas na luz. Pelo vento. Olhava as árvores, sempre as árvores, aquelas árvores no mesmo lugar, para sempre. O muro branco. Um homem encostado a um muro branco escolhe vestir-se de branco, camisola, calças, sapatos brancos, o seu rosto é branco. O olhar branco. Dissolve-se no muro, o homem é o muro branco na manhã branca. Parte para se movimentar e fica a olhar a postura do muro, como as árvores, o mesmo lugar de sempre. Um muro não parte, as árvores não partem, assim aquele muro não parte, aquelas árvores estarão a ladear o alcatrão escuro para sempre. Um homem só não é um muro porque se encosta a um muro branco e parte. Pela manhã, um homem chora, em pé, abraçado a um muro branco.

Que diálogo há entre um homem e um muro? Quem começa o diálogo? O que chora um muro? Que argumentos? Os teus valores, problemas, teses, convicções. Que crenças tem um muro? Que religião professa? O que deixaste de acreditar? Quando encontraste a felicidade? A anestesia que precisamos para suportar a morte. A necessidade da ilusão, de todas as ilusões. As crenças inúteis que se tornam úteis para viver. Que ideais tem um muro? A tua liberdade, as opções que tomaste, as que nunca serás capaz de tomar, os sonhos que sonhámos, os que nunca foste capaz de sonhar. O riso, há ainda o riso para aprendermos no futuro, nós que nunca soubemos verdadeiramente rir. Falaram-nos do pecado e cerrámos os dentes. Nós, que acreditamos no riso, a nossa única crença. Nós que negamos o pecado, nós que choramos para que o riso seja mais comprido para além do bem e do mal.

O que mais me perturba em ti é a tua imobilidade.

Junto ao muro, o homem planeia o seu trajecto, um homem ri. Ensaia como um actor a entrada em cena. Prepara-se antecipadamente para sentir, experimenta as sensações de que é capaz, pede às sensações que correspondam ao que lhe pedem. Tem um horário de trabalho intensivo. Chora e ri encostado a um muro, alguém escolheu o seu destino. Ele escolheu o seu destino. Um homem escreve num muro branco as suas próprias palavras, lê a suas próprias palavras, recita as suas próprias palavras. Confidencia ao muro o que sabe sentir. As palavras escrevem-no e ele lê, lê atónito o que é, o que pode ser, o que não é, o que não pode ser. Um homem dissolve-se num muro. Mau aluno das sensações, sente mais do que pode sentir. E o muro branco. E o seu muro. Os significados. A memória. O amor. A emoção. A vida. A morte. E o muro escreve no corpo do homem a luz da manhã, a manhã prolongando pelo alcatrão da rua a sombra de um homem encostado a um muro.

No muro, branco numa manhã branca, registam-se as palavras que já não sabemos quem as escreveu, se o homem se o muro, registam-se as sílabas num recanto - marcas, frases, parágrafos, vírgulas, linhas, letras, veias, noites, mar, sombras, acentos, títulos, avenidas, vento, traços, fontes, desejo, interrogações, corpo, cidades, lugares, portos, adjectivos, imagens, nomes, metáforas, sentir, beber, amar, rir, dias, areais -, se o homem se o muro, registam-se sílabas num recanto até à resistência da luz.

Depois, o muro se move, ainda é manhã, move-se. Como se movem as sombras, as palavras, o vácuo.

O muro regressa a outro lugar, sentir o vácuo de outro lugar.

Numa manhã, até à resistência da luz.

E quem aprendeu foi o homem, não o muro, este o ensinou que o arrependimento é uma religião inútil.

O muro deambula, flutua, flui, desliza, escorre, esvai-se, erra, dilui-se.

Por mais que se procure no horizonte: nada."