ser bicho
Podíamos viver como bichos, amarrados aos nossos instintos mais ancestrais. Erraríamos pela noite, assaltando varais e amassando flores orvalhadas, sem machucá-las. Adormeceríamos amassadinhos, uns perto dos outros, para proteção do bando. E saberíamos reconhecer o cheiro da chuva se aproximando e as alternâncias das marés e manadas, farejando o perigo e camuflando-se na relva.
Podíamos viver como bichos e seria mais fácil, tudo seria mais lógico e menos bárbaro. Sem desejos auto-destrutivos e ninharias emocionais postas à mesa do jantar. Sem pratos, copos, talheres, cadarços, processos. Sem ônibus, presentes, cartas, mentiras e horários. Sem saudades e sem futuro. Apenas um bicho, espreitando e roçando a casca do tronco da árvore alta, sem nome, sem cargo, sem norte. Para a necessidade que dói no corpo, um pedaço de carne e cópula.
Daí anoitece, amanhece e a gente canta para a terra, agradecendo.