Amsterdam II

Em Amsterdam pelo fim da tarde. No porto de Amsterdam. Ouço Jaques Brell com as notas de uma música longa. Os barcos deslizam entre mil pontes, navios de partida, navios de chegada. O mar que amamos, o mar na margem de nós. Todas os jardins se cobrem de flores, mais fúlgidas ao poente. Há luzes eléctricas acesas num amarelo pálido, luzes longínquas que prolongam todo o espaço pelas pedras marítimas. Há a angústia de outras tardes, do vento rondando os edifícios conservados em séculos, as ruas ao anoitecer naquela melancolia própria de todas as cidades ao anoitecer. O importante é ter estado aqui, sair do quarto do Hotel Des Arts e só voltar com a febre das sensações ancorada ao corpo. Agora se dilui a solidão em novos postais ilustrados. Pelos ecos translúcidos da noite, quando os vidros reflectem a nossa sombra, quando somos os corvos felizes de Van Gogh, ou as tulipas daquele outro pintor que anónimo nos vê passear anónimos, sermos um corpo sob o céu até aos cafés da praça Dam. Descermos pela vulgar Spuistraat ao encontro do destino, talvez ver passar os comboios como gostava o suíço Georges Simenon, olhos nos olhos, o teu sorriso profundo na chuva que cai pelos néons purpúreos da madrugada. Fomos os dois sob as películas do sonho com as estradas da paisagem mergulhadas numa chama de estrelas. E de tudo o que se podia fixar na névoa do silêncio, encerro as cortinas do real pela curva ígnea dos teus lábios.