- CAPÍTULO 2 - .:: Sobre os passos silenciosos no corredor ::.

Com a mesma impaciência de antes olhou para os ponteiros do relógio de pulso, e caminhou apressada até parar frente a frente à faixa de pedestre, segurou uma alça da mochila com a mesma mão que prendia entre os dedos a carta que começara a escrever na aula de teatro, roeu o esmalte da unha do indicador da outra mão fitou o homenzinho vermelho do outro lado da rua, pensou duas ou mais vezes com que cara entregaria a carta ao destinatário, (o sujeito que ocupava o quarto perto da cozinha) o homenzinho piscou algumas vezes até permanecer ali, vermelho, parecendo olhar para ela.

Desejou que ele ficasse verde, estava atrasada e sabia perfeitamente disso, precisava chegar em casa o mais rápido, tomar uma ducha e sair novamente, tinha de voltar ao teatro. O relógio marcava treze e quarenta.

Irritada ela bateu o pé, girou num movimento de translação, ao menos foi o que veio em mente, ou seria rotação? Mandou os pensamentos passearem, balançou a cabeça, numa tentativa de esvaziá-la, mordeu o lábio inferior, e olhou para os dois lados da rua, o homenzinho ainda estava vermelho, arriscou um primeiro pé em direção a faixa, alguém ao seu lado pestanejou, ela não deu atenção, segurou a outra alça da mochila e pensou em correr, foi quando no mesmo instante, vindo do além, um coletivo, freou bem perto do meio-fio, deslocando uma grande quantidade de metros cúbicos de ar, ela sentiu as folhas da carta se desprenderem de seus dedos, com o cabelo no rosto tentou agarrar o que pode, ao certo, agarrou duas páginas, as outras se espalhavam pelo ar, uma ou outra subiu bem alto, outras se pregaram na traseira dos carros que passavam, houve aquelas que praticamente morreram atropeladas, as sobreviventes, estavam amassadas em sua mão fechada. Ouviu risadas e uma exclamação espantada seguida de um xingamento, com a mão fechada nas páginas amassadas, tirou o cabelo do rosto não conseguia acreditar que as páginas que havia escrito com tanta impaciência carregadas de revelações sentimentais, estavam agora perdidas, espalhadas pela avenida, quis berrar, xingar, chorar, mas prendeu tudo até o choro e olhou para o homenzinho vermelho, que num passe de mágica, tornou-se um duendezinho verde, num passo largo. Entrou no ônibus e sentou em um banco solitário, ali mesmo na frente.

As cinco para as duas da tarde, estava em frente a porta da pensão onde havia conseguido o quarto, dois meses atrás, depois de quase duzentos telefonemas, não era lá essas coisas, nenhum dos quartos era, tinham uma cama, alguns tinham beliches, mas eram só para quem arriscava dividir com alguém. O anuncio pregado num ponto de ônibus, dizia que por 70 reais semanais, ou 140 mensais era possível conseguir um quarto com cama e janela, algo que no começo ela achou estranho, que quarto não teria uma cama e uma janela? Mas ao ver o lugar onde ficaria até terminar o curso, soube que no mundo, alguns dormitórios, são chamados de quartos, em outros são tocas ou buracos, com pia e espelho ao lado da cama. Guardou as páginas amassadas dentro do bolso da blusa, e correu para dentro, a pensão era uma casa grande, um sobradinho, com varanda e porta larga, ficava entre duas subidas, entre elas, no meio do "U", era uma casa antiga pro bairro, ao fundo, num quintalzinho onde a senhoria estendia as roupas, havia uma árvore de amora, com uma casa da árvore desmantelada entre dois galhos bifurcos, pensou se antigamente pudesse ter vivido ali crianças, ou se os filhos da senhoria haviam construído o que era para ser uma casa da árvore, ou talvez tábuas pregadas em uma árvore mesmo. Havia um longo corredor que levava até os quartos ao fundo, uma fileira de portas com alguns passos de diferença entre elas, seu quarto era o que ficava mais perto da janela no fim do corredor, que pela manhã era "meio iluminada" e durante a noite era parcialmente escuro, só havia uma lâmpada que pendia do teto sobre a escadinha que levava para a sala de tevê.

Ela entrou apressada, sabia que ás duas da tarde algumas pessoas chegavam para almoçar, no tempo que estava ali, não conversara com muita gente, grande maioria eram estudantes que estudavam durante manhã e estagiavam a tarde. Ela passou pela sala de tevê, onde três sofás e duas poltronas eram dispostos em frente a uma televisão daquelas antigas, com caixa de madeira e botão de sintonizar, felizmente não havia ninguém na sala de tevê, para ela era quase um martírio passar entre as pessoas que ainda por cima a olhavam com certo ar de descontentamento, feito gente que guarda palavras para expurgá-las mais tarde aos ouvidos de um grupo debochado. Ouviu vozes vindas da cozinha, caminhou na ponta dos pés até a porta de vidro fosco que dava ver quem estava sentado a mesa, ouviu também passou vindos da sala de tevê, desesperada pulou a escadinha que descia para o corredor dos quartos, alguma coisa rolou pelo chão, viu que eram as páginas da carta, pensou em voltar e pegar, tinha que ser rápida, mas quando abaixou rápido pegou as páginas que agora eram uma bolinha de papel, viu o surgir no corredor, o sujeito da primeira porta, o sujeito para quem estava escrevendo a carta.

Ao contrário do que ela havia imaginado muitas vezes ao deitar-se todas as noites, ou quando tentava ouvir alguma coisa colocando um copo na parede, ao passar para ela, ele não a surpreendeu com palavras grosseiras, ou ao menos com alguma palavra que expressasse satisfação em vê-la ali, ele simplesmente caminhou até a porta do quarto e disse um "Tarde!", sem nem olhar para ela.

"Boa" Disse ela virando-se imediatamente, ficando de costas, ouviu a chave girar na fechadura, em seguida um ranger das dobradiças, e por fim, o som dela se fechando, naquele instante pensou que seria uma tremenda burrice escrever uma carta para um sujeito como aquele, tão sem reações, teria de falar com ele. Arriscou olhar para trás, e caminhar com passos silenciosos, até perto da porta, ouviu o rebuliço de chaves, correu em direção a sua porta com os calcanhares, ele abriu a porta novamente, guardou as chaves dentro do bolso da jaqueta jeans, estava com uma mochila nas costas, olhou para trás, ela fingiu estar procurando suas chaves no bolso da mochila, de cabeça baixa ela não viu quando ele desapareceu em direção a porta de vidro fosco.

Jean Levi
Enviado por Jean Levi em 09/07/2009
Reeditado em 02/09/2009
Código do texto: T1691310
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