Os mil Martírios de Sebastião
Feitos de sangue e frio, o frio da rua : vem de fora para dentro. Feito de inocência, suor e frieza. A frieza que vai do tal do coração para fora.
Feito da outra, feito de vida com um pouco de sal. Feito de pus, dor e anestesia. Feito de massa que cresceu com o tempo entre o osso e a pele. Feito de ferro, aço e gasolina. E fogo. De pobreza e de riqueza volúvel. Feito Sebastião, que era um salvador de quem não sabia viver.
Feito assim, andou três dias pra conversar com o tal que daria à ele algumas ferramentas de trabalho. O velho tinha cara seca e voz macia, era confuso, talvez por isso ninguém gostasse nem desgostasse dele. Ele só estava ali. Ele só existia.
E o Sebastião entrou na salinha escura com a cabeça erguida, por medo. É interessante ver que gente de personalidade também sente medo, por isso ergue mais a cabeça e grita quando não tem o que falar. Então, olhou na cara do velho de voz macia e quis se mostrar forte e pronto pro trabalho. Mas o velho disse que não era de sola que se chegaria ao lugar que ele queria : era preciso ter voz macia e uma imagem de quem só existe e não é grande coisa.
O velho até que sabia das coisas.
Procurou na mesma cidade um outro. Estranhou ser um moleque, vinte e cinco? Com um cinto de couro e um olhar de quem sabe das coisas. Exatamente por isso Sebastião soube que o moleque não sabia nada.
Andou mais dois dias para procurar um outro que poderia ajudar. Ao chegar viu uma mulher amamentando uma criança suja. Ela tinha gordura no avental e um pouco de farinha no cabelo e pela figurativa expressão de Sebastião, a mulher descobriu o que ele queria sem fazer perguntas. Ela disse para ele não olhar daquele modo porque caridade e pena é pura arrogância.
Sebastião sentou e tomou o café extremamente doce da mulher. Lembrava a avó dele. Não a mulher, mas o café dela. Quando o café acabou ele percebeu o cheiro de mofo misturado com mijo de criança e gordura, oléo... não sabe. Aquele cheiro era tanto que pesava no ar. Ele sentia os ombros caindo, a respiração difícil e os pés colando no chão, será que não era visível que ele passava mal? Nenhuma fresta, nenhum espaço de ar, nenhum lugar pra correr antes de ter a conversa que lhe interessava. Só os olhos corriam na cara parada de Sebastião, procurando um espaço menos fétido naquela gaiola sem frestas.
A mulher não perguntou nada. Deu à ele as ferramentas e falou : a única coisa que te digo dessa merda toda é que cê tem que saber pra onde vai. E não vai adiantar mudar o caminho - ela falava com os olhos tão cravados que o fazia sentir vergonha - Pensando isso cê não vai maricar no meio do caminho. Se pensar muito, perde a ida. Se esquecer, perde a volta. Agora vá.
Tudo pesava tanto que ao sair da casa sentiu que voava. O ar era outra vez leve e sem cheiro, era, enfim, ar. Sentiu que cairia de joelhos na terra mas se esforçou para andar até que a mulher não pudesse vê-lo pela janela. Que janela? pensou. Não tinha. Mesmo assim não queria correr o risco e andou, andou, andou. Caiu por terra, em cima da mala das ferramentas do trabalho. A dor os joelhos que bateram no chão não era nem um terço da dor que sentia dentro da casa. Ficou ali abraçado com a mala, como a mulher abraçava a criança suja do colo e quando sentiu que sua carne voltou a aceitar o ar puro, levantou e foi embora. Se pensasse muito perderia a ida.
E Sebastião foi.