Flutuação telúrica
Hoje tenho a agenda cheia, nem sei se vai dar pra almoçar. Sempre tenho a agenda cheia; raramente almoço. Mal abri os olhos e já estou sentado no computador; ainda nem bebi a primeira xícara de café e já preciso responder as mensagens que me enviaram. Tudo é urgente. Tudo é importante. Tudo tem que ser feito - tudo, só há uma coisa que não está incluída no que chamo de tudo. Imaginem.
Sou algo entre o tudo e o nada, mas acho que estou mais do lado do nada. Preciso ir. Não há tempo para descanso nem diversão. Vestido com um dos meus ternos pretos, saio de casa às 7:45h e já estou cansado. Morro cada vez que ligo meu carro de manhã. Estou atrasado e o trânsito não flui. Falo no telefone. Eu não sei como estou; ninguém quer saber como estou: me perguntam sempre se estou bem da mesma forma que se diz alô - mera interjeição de apelo.
O trânsito está parado. Com medo, olho pros lados pra ver se não surgirá um ladrão à minha janela. Não há ninguém, apenas uma árvore e nela vejo um sabiá. O trânsito não anda. Olho mais uma vez pra ver se não vem ladrão mesmo e, apesar do ar condicionado, abaixo o vidro, e lá está ele com o peito estufado, cantando. E no meio do seu canto bééééééééé... Estou atravancando tudo, o carro da frente andou uns seis metros e o de trás quer que eu vá adiante. Não há tempo para um canto de sabiá. Estou atrasado.
O dia nem está muito quente, mas o ar condicionado do meu carro me congela; no escritório, o frio também é glacial. É bom porque assim o terno faz sentido, servindo para me proteger do frio que eu mesmo criei. Ele aumenta meus ombros. Mas até hoje não entendi pra que serve a gravata, esse penduricalho sem função nem beleza (será para esconder os botões? Oh, que grave, botões aparecendo...).
Notem que a primeira pessoa desse texto só pode ser uma brincadeira; trata-se de algum desocupado que finge ser eu. Na certa é algum escritor que me escolheu como personagem; porque eu nunca escrevo em primeira pessoa, nunca! É pessoal demais, não condiz com minha profissão. Não escrevo sequer cartas, tenho quem as escreva para mim; assim também são os meus discursos: pago bem para que os escrevam; eu apenas os leio em primeira pessoa. Há tempo não sei o que é usar a primeira pessoa num texto.
E tanto é obra literária o que o leitor tem em mãos, que no meio do expediente - na hora mais pesada do dia - resolvo voar. Tranco a porta, desligo o celular, ordeno que não me chamem. Preciso de caos, de Baco; mais um grama de gravidade e explodirei. Baco me lembra carnaval. Para reagir ao peso da rotina opressiva preciso de um samba, de um samba e de um bloco.
Uns voam com asas de cera e penas
Ou em tapetes mágicos, de tecido ou de palavras;
Outros se afastam da realidade,
Quando vestem suas fantasias
Para desfilar, no carnaval, sua liberdade.
Porque um homem de terno é um corvo.
E um corvo, quando quer se alforriar,
Veste-se de sabiá
E se lança ao céu do carnaval,
A fim de livremente voar.
Quanto maior a gravidade da rotina,
O peso do dia a dia,
Mais difícil é sair do chão;
Portanto, mais louco e frenético deve ser o vôo:
Torna-se mais que urgente entregar-se à ilusão.
Um homem cuja função é redigir
Burocráticas petições e frios relatórios,
Atado num gélido escritório,
Escreve então um samba-enredo
E se faz poeta para gritar sem medo.
O som monótono e arrítmico dos dedos
Trabalhando no teclado se converte na loucura cadenciada
De uma percussão tocando samba;
E a organização estática do escritório transforma-se
No caos de um bloco, que pelas ruas descamba.
Mas é o carnaval uma festa,
Promovida por Baco para Apolo,
Na qual paródias de nós mesmos são reveladas?
Ou será que somos paródias na maior parte do tempo,
E a fantasia, ao invés de nos vestir, nos desnuda,
Tornando aparente a essência sempre camuflada?
Afinal, no carnaval, as máscaras são colocadas ou retiradas?
Apolo é Baco disfarçado ou vice-versa?
Já não sei quando escondemos ou libertamos
Nossas vontades refutadas.
Já que não consigo voar num tapete, uso as palavras; já que não posso voar, convenço-me a pular, pular carnaval; o pulo é quase um vôo - curto e patético, eu sei –, mas é indiscutível que, para quem não tem asas, é o mais longe que se pode ir do chão.
Esta poesia é fruto da mente ociosa porém sensível de algum poeta. Eu sou um homem da prosa e, como já disse, não perderia tempo pensando em algo assim, tão sem sentido, sem finalidade, sem valor pragmático. Ademais, sou um especialista e, como todos sabem, verdadeiros especialistas não empregam sua técnica com generalidades; na verdade, a técnica não serve para tratar de nada que seja amplo, geral. O todo é complexo demais; acho mesmo que é inescrutável e por isso devemos reparti-lo sempre e entregar cada pedaço compreensível a um especialista. Assim é muito melhor: nem precisamos nos preocupar com o produto final; basta que façamos bem a nossa parte; o todo não é problema meu...
Tenho quase certeza que quem redigiu essa poesia, usurpando minha primeira pessoa, foi Pedro Oniwlack: trata-se de mais uma brincadeira deste ousado voador.* Eu vi como me olhava na semana passada; aposto que foi ele quem enxergou isso tudo quando me viu trabalhando, com todo o peso da gravidade me puxando, não para o chão, mas pra dentro da rotina. Enquanto trabalhava no 15º andar, Pedro, que estava do lado de fora, flutuando, me olhava, através da janela.
Eu, ao contrário de Pedro, tenho medo de altura. Pular carnaval é o que há de mais dionisíaco para mim. Um pulo é um vôo para quem nunca se arrisca a sair do chão. Nunca entendi Ícaro. Nem quero compreendê-lo; prefiro morrer num labirinto, ainda que não o perceba conscientemente, a voar, mormente quando se trata de vôos temerários, com asas de cera e penas, sobre o mar. Por isso, o maior afastamento que consigo do solo, por vontade própria e individualmente, é pular: a fugaz flutuação telúrica de um pulo é o meu ápice.
*Pedro, espero que não fique irritado com minha ousadia. Você sabe que não sou poeta, mas sabe também o quanto admiro a poesia. Por isso, resolvi fazer uma visita prosaica a um poema seu. Espero que me compreenda.