[Dos Subterrâneos: A Puta Filósofa]

Tolerar, tolerar... o que pode haver de mais angustiante que tolerar o absurdo de estar vivo, e de contemplar essa decadência? Até o trem do tempo chegar a mim, nada vi, nada soube; a duração da passagem apenas me fez sofrer a fuga dos instantes; e após o último vagão sumir na distãncia, nada verei, nada saberei! Não acrescento nada ao trem da vida, e dele nada retiro - a aventura de viver é inútil.

O meu tempo passou, e de tudo, o gozo eu mal pude sentir, tão rápida, tão fugaz foi a transação que me foi proposta - a vida é a insensível puta que me ensina uma sábia lição ao me avisar, "vamos, meu bem, o seu tempo passou!". Uma puta filósofa, afinal?! Será? Que sei eu?!

Sou um animal que vive no escuro, escôo sob a inextensa lage fria da ignorância de mim - já perdi a inocência, sei que ninguém se encontra e que ninguém pode ser encontrado - que consolo, hein?! Hein?! A minha cara sem graça aparece à luz do dia para cumprir os trâmites da existência - ensinaram-me que comer é apenas para ficar livre do encargo de alimentar o corpo. Às vezes, sou nocivo - tenho vontade de cuspir na cara que as pessoas me apresentam, e sei que elas também fariam o mesmo comigo; ah, e quando baixo a guarda, o fazem - o outro é uma ameaça!

Tolerar, tolerar... viver, cumprir as funções que alimentam e nutrem este meu organismo, esta máquina de viver que médicos manipulam sem consideração alguma - é isso que tenho de fazer todos os dias. Entretanto, admito, foi um conforto aprender que escrever é apenas um [excelente] modo de estar sózinho - quem me ler, não perde nada, não ganha nada!

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[Penas do Desterro, 17 de novembro de 2008]