[Sem Olhos]
Hoje foi só mais um dia.
choveu frio sobre a infelicidade dos pobres —
afinal, quem é que não sabe que Deus odeia pobres,
manda-lhes chuva e frio pelas manhãs,
quando se levantam para aumentar a riqueza alheia,
e mais chuva à tarde, quando estão prestes
a passar pelo boteco e esquentar a goela com uma pinga?!
Também eu não tenho pena dos pobres,
não tenho pena de mim, nem de ninguém,
não aprendi a sentir "pena",
aprendi a ver realidade dura e a calar-me
com o bocado de comida que me coube;
nada me veio sem luta, muita luta;
cão faminto aferrado no osso carnoso,
em nome do quê o largaria?
Hoje foi só mais um dia.
Só mais um em que minha coragem
não deu para colocar uma bomba incendiária
no olho do cu de quem me incomoda.
e são muitos os que me incomodam, muitos!
sempre penso que vou morrer sem ter de matar,
ou vou matar antes de morrer — vivo, sou,
serei sempre um perigo para mim e para os outros!
Não, não tenho pena dos pobres na chuva,
dos que dormem nas calçadas,
dos que beberam além da conta
e foram lançados na rua, sim na rua;
passo no meu carro, ar quente ligado
num nível confortável, boa música,
e nem me compadeço, parar, pagar-lhes
um café quente, um chocolate que lhes
aqueceria as entranhas friorentas —
Nem pensar! Por que eu, e não outros?
Afinal, onde é que eu nasci,
senão no inferno deste país?!
Sou um animal sem olhos,
e quem é que precisa de olhos
para viver nas abissais regiões
do nosso duro cotidiano? Quem?
Só não vê quem não quer ver...
Quem não vê também é culpado!
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[Penas do Desterro, 10 de junho de 2009]