[Dos Canalhas]

É fato universal, e que ninguém ouse dizer que é questão de escolha: a vida é essa sórdida arte de impor perdas, é um jogo entre os canalhas e suas vítimas — a humanidade está no paleolítico moral, e o “homem é”, e será sempre, “o lobo do homem”! A menos daqueles que se esculhambam sozinhos, sem a ajuda de ninguém, a história das relações não passa de uma fieira de relatos de canalhas e suas vítimas! Não estou interessado em falar sobre os políticos canalhas — a canalhice praticada “por atacado” é até admirada pelo povo! Mas reconheço: a vida sem os canalhas seria um tédio só!

Afirmo que aqueles dois eram canalhas... vivendo como viviam, o que mais podiam ser?! E por que afirmo? Oras... eu cresci ouvindo histórias de relações — separações, brigas de famílias, paixões sem solução, traições prolongadas no tempo, gente sumida sem deixar rastro, moças cuja vida descambava para a zona, mortes de todos tipos: naturais, a facadas (sempre vinte duas, não me perguntem o por quê deste número), a tiros, e até a poder de feitiços pesados! — de comum, eu notava, em quase todas essas histórias, a presença ativa de pelo menos um canalha! E não importa se homem, ou mulher, havia, no mínimo, um canalha, e, é claro, a vítima, ou vítimas... E neste caso, não seria diferente!

A princípio, eu ouvia apenas fragmentos, e, impaciente, saía a cuidar da minha vida de criança. Mas depois, com o tempo, como que por um aclaramento da minha compreensão, passei a me interessar por aqueles acontecimentos narrados na intimidade da minha casa. E foi assim que ouvi sobre os rumores do que se passava na casa amarela da esquina, ali, em frente ao nosso campinho de rua, onde costumávamos jogar futebol de bola de meia.

Era comum falarem dos mistérios da casa amarela da esquina. Ali residia um casal sem filhos — ela, bem mais velha que ele, era uma mulher morena, muito sensual, usava grandes brincos de argola, olhos escuros, brilhantes, creio que teria uns quarenta, mas qual dos moleques da minha idade não sonhava em trepar com ela? Ele, um tipo anódino, balofo, barba sempre mal-feita, olhos sem vida, teria uns trinta — a gente não entendia como podia uma mulher como aquela, espirituosa, conviver com um bostrolô daqueles — os gerúndios da vida não são para compreender, são ralos para a fuga do tempo...

A casa amarela... de dia, ou de noite, sempre silenciosa. As pessoas que lá vinham, mulheres, moças em sua maioria, entravam e saíam com muita discrição. Exceto pelos raros amigos do bostrolô, estes, já conhecidos na rua, só apareciam nas tardes quando ele chegava do trabalho, nenhum homem era visto entrando na casa! O que se passava ali? Alguns vizinhos diziam ouvir choros abafados, soluços das jovens. Também se falava muito sobre moças que adoeciam gravemente, algumas beirando a morte, e isto, depois irem à casa amarela!

Quando as conversas viravam para a casa amarela, falava-se em voz baixa, suspeitava-se de algo estranho, muito estranho; mas ninguém tinha evidências, certezas do que se passava ali. Haveria canalhas nesta história também, com certeza... a mulher, o seu bostrolô... ninguém o supunha capaz de alguma coisa audaz, ele seria apenas conivente (com o quê?). Mas, quanto a ela, ah, ninguém punha a mão no fogo! Ela não trabalhava fora, mas vivia bem vestida, fazia boas compras no armazém. Era sorridente, bem disposta, uma presença forte - ninguém ousava lhe fazer perguntas. E, sendo ele um simples mecânico, como poderia...

Os tempos eram de transição, mudança rápida de costumes, novidades surgiam todos os dias... viagens espaciais, a minissaia, a pílula, as músicas... a freqüência de jovens na casa amarela foi diminuindo, diminuindo... até quase cessar de vez, e não mais valer a pena manter a “atividade” de antes.

Sem castigos ou sofrimentos, o casal envelheceu em paz — pois como se sabe, os canalhas também envelhecem, tem cabelos brancos, alguns chegam até ostentar uma “certa” dignidade!

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[Penas do Desterro, 06 de junho de 2009]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 07/06/2009
Reeditado em 08/07/2012
Código do texto: T1635968
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