A MULHER E A PEDRA

A mulher fitou a pedra e descobriu que toda a realidade não existia, pois a sua realidade era a pedra. A grama errante, a parede esburacada a qual se encostava, os trilhos enferrujados, o esgoto derramando-se, o fedor dos dejetos, as suas roupas rasgadas, nada era real. Somente a pedra possuía o direto de ser real, o direito de ser palpável e pertencente a algum lugar no universo, o qual também se tornava efêmero diante dela.

Em algum ponto do passado, a mulher ouvira que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, mas descobria naquele instante, tão raro de sanidade, quão errônea era essa sabedoria da física. A pedra ocupava todos os corpos, principalmente o seu próprio. A pedra estava em todos os lugares, oferecendo-se como uma dádiva repleta de promessas quebradas e desejos corrompidos.

A mulher é a pedra, mas a pedra não é a mulher. A pedra só pode ser a pedra, inexorável e impassível. A mulher não é mais a si própria e, mesmo garimpando os descaminhos de sua vida, jamais será capaz de encontrar a antiga existência do seu ser. Pois a pedra esmagara seu passado e suas lembranças. A pedra esmagara como um martelo toda a faculdade da mulher, assim como seu rosto outrora tão belo e etéreo, agora nada mais que uma máscara ceifada de vícios. A pedra esmagara a dignidade da mulher. E todas as coisas que pululam do inconsciente suplicando por serem saciadas, nada mais são que réplicas de pedras outras.

A mulher jamais será o bastante para superar a pedra, pois a pedra, apesar de caber em sua mão, é tão pesada, tão enorme que cobre o sol, cobre o mundo com sua cobiça. A mulher rendera-se a pedra, tornara-se uma beata dum ídolo maligno, cuja religião está edificada sobre inverdades, palavras incompreensíveis e enganadoras de uma bíblia jamais escrita. A pedra dita, a mulher obecede, omissa, como um cão perpretando truques, esperando ser recompensado com restos.

A mulher observa a pedra e mesmo que 99% do seu ser grite por liberdade, há 1% clamando pela saciação, um pequeno detalhe em si que clama pela pedra, pela fugacidade da pedra e pela nuvem mortifira de um prazer mundano e atemporal. Um provérbio diz que o diabo está nos detalhes. A pedra é um mero detalhe, uma tábua inclinada no assoalho de seu universo em crise. Um pequeno acidente numa paisagem em chamas. Ou melhor, a mulher é um mero detalhe na pedra. Um detalhe em meio a tantos outros já esquecidos.

Em meio a tantas vozes confusas, a única que a mulher é capaz de ouvir no torpor de sua abstinência é som convidativo da pedra. Um som baixo, mas capaz de eclipsar seus sentidos, suas crenças, seu dicernimento. Juntando a força que ainda lhe restavam, a mulher dobrou a pedra, tornando-a duas. E o som que encheu o mundo foi: Crack!

Leo Ramos
Enviado por Leo Ramos em 06/06/2009
Código do texto: T1635589
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