[Alguém a me Sonhar]

Estou bem acordado, pois estou a escrever estas linhas, desentranhadas de uma frase de alguém que, no entanto, não contém nenhum dos elementos que descrevo, apenas, talvez o clima.

Noite alta, sim, literalmente alta, pois estou numa região montanhosa de Minas. Chego a um pátio amplo, terra vermelha, defronte a uma igrejinha de taipa, do Setecentos, ou do Oitocentos, não sei dizer... mas, seguramente, de antes do século XX! Há não muito tempo, pois estamos ainda em julho, houve ali uma festa. De um a outro poste de madeira encravado no solo duro, estendem-se fieiras de bandeirinhas coloridas que tremulam ao vento da madrugada. A paciência da gente do arraial permitiu-lhes cortar e colar em fios compridos centenas destas pequenas bandeirinhas, um retângulo com um recorte triangular, como as de Volpi (existe alguém que nunca ouviu falar nas bandeirinhas de Volpi? Tenho pena deste alguém!).

Não sei como cheguei aqui, mas, se é que vim pela trilha enluarada e tortuosa dos sonhos, nem poderia saber! E venho de longe; pois o meu cavalo está suado da marcha, tenho nas narinas esse cheiro de suor misturado ao do couro do arreio. Gosto desse cheiro viajado - tantas vezes o senti lá minhas andanças, na Fazenda Barreirão.

De onde venho, também não sei, há muito que me perdi nesta minha vida; e neste momento, sei apenas que deixei pra trás asfalto, luzes, cidades, e os meus sonhos de cientista - estou aqui! E lá embaixo, rente ao córrego, o arraial está adormecido; seria o caso que algum dos moradores estaria a sonhar com um cavaleiro noctivagante, eu? Pois se alguém me sonhasse, eu teria pelo menos uma razão de estar aqui, a estas horas em que até o diabo dorme, dá descanso ao mundo.

Mas o fato é que cá estou; contemplo o pátio da igrejinha, e ao claro da lua, eu vejo as bandeirinhas flanando ao vento, os restos da fogueira apagada, cinza fria foi o que restou dos sonhos de quem veio àquela festa.

Aquele arraial de Minas existe, tenho certeza; e lá há alguém que me sonha, ou eu não teria feito esta viagem tão longa. Alguém que não conheço... ou conheço... conheci... seria aquela moça dos cabelos escuros, ondulados, olhos mansos, olhos "de nem ser"? Será... será? Ah, vou morrer aqui, longe dos meus céus, e sem saber quem é que me sonha!

[Penas do Desterro, 23 de maio de 2009]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 23/05/2009
Reeditado em 22/04/2012
Código do texto: T1610195
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