PARAÍSO OCIDENTAL

Ouço ainda os guizos do Paraíso Ocidental.Minha canoa desliza suavemente deixando para trás o pico Lushian. É uma tarde de fim de primavera, e a água transparente revela o corpo esguio e dourado dos peixes fugindo da correnteza. O céu, coberto de nuvens com a textura de penas de faisão, pulsa com matizes de vermelho esmaecido. Estou voltando a Huangchow. Onde estive nas três luas passadas?

Ouvir os guizos do Paraíso Ocidental quer dizer ‘renúncia ao mundo’. Mas quem pode por si só abrir mão de sua existência? O trovão se movimenta para além do horizonte, e desesperado procuro a orientação que me leve a casa de Su Tungpo.Parece que já posso me ver no seu Salão de Andar sobre as Nuvens, rodeado por familiares e aquecido pelo vinho. Nossa vida é um sonho, ou somos todos hipócritas e o banimos, o Filho Pródigo?! Não sei. Pintados de céu, os peixes comandam as ondas na água do rio.

Luzeiros prateados pastam além das paragens, e vaga-lumes se estorcem sob a seiva fértil formada das folhas que caem. Quero dormir. A canoa gira, e eu ainda ouço os guizos do Paraíso Ocidental. Engraçado, as torres do Lushian se banham de orvalho até ficarem transparentes- o vento impressiona de tão calmo. A noite de fim de primavera chega de todos os lados e eu desço o leito cremoso e sem margens.

Raios cortam o cerne dos bambuzais, e resquícios de talos flutuam no ar como lã. Eu quero dormir, mas o falso vulto do sono me sussurra ao ouvido meus antigos pecados. Um rosto de uma mulher como as águas, um manto cor de açafrão, um poema por escrever, orquídeas e rábanos deixados por um pincel esquecido...as pontes ao sul de Lushian se deslocam sobre o veio velho e azul que flui sem se mover.

Ouço ainda os guizos do Paraíso Ocidental quer dizer também ‘ não se mover’. Mas quem é capaz disso? Nem os imperadores Yu e Yao faziam isso! As montanhas nascem e crescem e dão à luz uma criança da montanha e morrem. Um homem encara sua vida e quando muito se torna um magistrado bem sucedido e casa-se e tem muitos filhos de grande vivacidade, mas o fato de que as montanhas o encaram de muito longe, do alto de seus milhares de anos e disso sorriem não pode ser esquecido. Entre homens e montanhas há um sentimento de unidade.

O rio se estreita perto da civilização.Estou perto de casa, e agora a face de Su é mais límpida. Vejo-o compondo um poema sobre pássaros outonais. O exílio o fez escrever sobre pássaros ou foi sua ligação com eles que o levou a exilar-se? Não sei. Sei que o vejo na grama, sentado. E as cerejeiras, enquanto isso, florescem e desenham no ar o elemento que dá origem ao centro das estações na terra, que corresponde ao centro das estações no céu. Neves ciganas cobrem os cabelos do velho Su.

Meu manto está frio, a noite explode lá fora, como um cântaro, lançando estrelas em todas as direções. Véus cada vez mais suaves se destacam do Lushian, lá longe. Nuvens são ambrosia para os deuses. Outras imagens me ocorrem.

Na margem próxima, um relicário de Buda. Uma colméia. As abelhas flutuam em redor do mármore branco. A imobilidade total contrasta com a vida incoercível. O mistério se afasta, com apenas um espectador. E o espectador se afasta, com todos os mistérios dentro de si. Os ramos se contorcem e as flores noturnas abrem, objetos da paisagem bisotada estremecem. Os lábios ressecam e a mente embota.

Posso sentir o odor de Huangchow. As janelas de papel, as pipas vibrando pelo ar, o vinho nas tabernas, os jardins. O velho Su compõe um poema sob as cerejeiras. As crianças brincam com calhaus. Mas já é dia! O sol ganha um contorno gigantesco e apavorante, descendo sobre a vila.

Ouvir os guizos do Paraíso Ocidental significa ‘ verdadeira face’. Já não recordo mais o rosto de meus amigos. A canoa bate na pequena ponte. Estou em casa, mas não é mais minha casa. Para dentro do portal, já não reconheço mais meus irmãos ou minha mãe, minha atenção se volta aos movimentos pouco nítidos, os ruídos da madeira rangendo, o assobio do vento nas frestas, o farfalhar de vestidos e a água fervendo para o chá. Só não me esqueço do velho Su.

-Então, encontraste o Paraíso Ocidental?, pergunta o velho.

-Não, eu respondo. Mas sei que fica além do pico Lushian.

-Muito bem, diz o velho Su. É exatamente lá. Estou compondo um poema sobre os pássaros outonais. Fez muito frio à noite, e não pude concluí-lo. É assim:

Pássaro outonal, eu te peço, afinal:

Não me cubra com as neves...

E ainda não pude pensar no último verso.

-Mas é muito fácil, ó meu pai. Se me permitir, é assim:

Pássaro outonal, eu te peço, afinal:

Não me cubra com as neves...

Que trouxestes do Paraíso Ocidental.

Filicio Albara
Enviado por Filicio Albara em 21/05/2009
Reeditado em 21/05/2009
Código do texto: T1606481
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