Areal Nocturno

"Se existissem deuses como poderia eu suportar não ser um deus?

Nietzsche

A sombra insinua a penumbra pálida, um quadro de imagens para ler a descrição intacta. Aprender os títulos da noite nessa hora solene em que as avenidas descem para o mar. Os mesmos navios numa atmosfera azul. Onde fui. Ali se ficava, ali se podia ficar. Sem ter nada a pesar os bolsos. Num muro passa o vento. Como a emoção cresce sob as fendas da névoa. O que dissemos já foi dito na litania dos dias, agora apenas a residência do silêncio marítimo. Ficar nessa alegria instantânea da pulsação. Nessa alegria - insisto. Era assim até ao cansaço de olhar.

Os títulos da noite. Os bares fechados para que ninguém volte e ninguém volta pelo asfalto paralelo às arestas da solidão. A aurora desce como um exercício consciente aos arcos da ponte, dos ulmeiros se ouve a emulsão da chuva diluindo o tédio. Talvez o tédio. As luzes mais fugazes em janelas longínquas. Talvez. Assim se sonha numa viagem de nuvens, o vapor do frio. Um comboio do outro lado da folhagem persegue o próprio destino: feliz. E eu imóvel não tremendo os ombros, a toda a largura do areal estendido. Ali ficava. Os dedos apontados ao mundo como um deus.