FRAGMENTOS MÁGICOS
FILICIO ALBARA
O pai de Filicio Albara, Max, é uma figura excêntrica e lendária -nessa ordem- das artes e ciências. Aos trinta e três anos, entregou seu posto de professor da universidade de Bologna e construiu o primeiro tradutor universal, chamado de Tabula Albara; sua vida depois disso é um mistério quase completo. Um ticket de trem para Constantinopla é o último registro físico que se tem dele. Max teria dito a seu amigo Togni Buonachiesa, de Trento, que precisava verificar um achado arqueológico ocorrido próximo às nascentes dos rios Fison e Gion, no extremo Oriente.
Como sabemos, estes rios não existem. Segundo a simbologia bíblica, eles circundariam o intocável Paraíso Terrestre. No submundo científico da Internet, porém, quase todos juram de pés juntos que Max Albara, após estas pesquisas, teria iniciado a confecção da primeira inteligência artificial filodominomórfica. Os sites a apelidaram de INTELIGÊNCIA –A, e também descobriram que Max tinha sido localizado pela Interpol próximo à Cidade do México, numas ruínas, e fugiu logo depois com relíquias.
Filicio e sua irmã Fortuna, de treze e seis anos, enquanto isso, moravam com os Buonachiesa. Max não tinha tempo para eles. Não mesmo. A mãe deles, fugida há muito, não quis nem saber dos dois. Vivendo no Vêneto, desde cedo demonstraram ter puxado ao pai. Filicio era intempestivamente assolado por pesadelos e Fortuna mal falava. Dificilmente iam à cidade. Os fenômenos naturais tinham uma ação mágica sobre o primeiro, e um efeito espúrio sobre a segunda. Eram muito unidos até que, um dia, Filicio foi encontrado por ela às três da madrugada quase morto no centro do labirinto de teixos da villa dos Buonachiesa, como se tivesse sido atingido por um raio. Ele foi mandado ao exterior para tratamento, e Fortuna permaneceu com a família adotiva.
Diz o conto que, sete anos depois, Filicio retornava de suas viagens com o amigo de sempre, Claudio Borromeo, quando teve uma terrificante visão: a mansão dos Buonachiesa abandonada, os estábulos em fogo e o labirinto destruído.
Onde estaria Fortuna? Por que Filicio retornara?
E o quê, afinal de contas, teria acontecido ao grande Massimiliano Albara?
Aí é que está o pons asinorum da história...
(PONS ASINORUM- a ponte dos asnos, que se deve transpor para alcançar o conhecimento)
1.
“atribuir sonhos inquietos aos que dormem em terra tão quieta”
...no fim, as luzes se apagaram, um sopro gelado preencheu a sala. Sons de espadas caindo no chão. Filicio Albara sentiu a força de duas mãos que o puxavam pelo pescoço.Avistou a porta de entrada por entre sombras, enquanto era levado como uma pluma para a saída.O vulto- pois Filicio não sabia sua verdadeira natureza- o lançou asperamente para fora, tanto que ele se feriu muito na queda. As chamas das velas lá dentro retornavam. Bem no centro de sua consciência,ouviu o seguinte aviso:
-Não se aproxime daqui novamente.
Claudio Borromeo, seu velho amigo de tempos, o ajudou a erguer-se.
-Está ferido, chefe?
-Só no meu orgulho.
-Da próxima vez, me deixe acompanhá-lo.
-Da próxima vez eu...
Enquanto dizia isto, o velho casarão se desfazia no ar. Devia ser por volta das cinco da manhã.Filicio e Claudio estacaram a observar. Fios de luz desciam pela encosta da montanha.
-Vamos voltar aos cavalos, disse Filicio.
-Para onde vamos, agora, chefe?
-Para longe dessas terras. Comeremos em alguma taberna do meio da estrada para Saracina.
-Chefe?
-Que é?
-Quem eram aqueles senhores?Que duelo foi esse?
-Ah, meu amigo curioso, é uma longa história.Talvez não cheguemos a ver o seu fim.
-Pois eu ouvi os nomes de alguns deles, enquanto conversavam. Eram Lesage, Greene e Vasari.Os outros dois não ouvi.Um francês, um inglês e um italiano, correto?
-Correto, mas me obedeça e faça caluda.
-Era um lugar mágico, não era? Destes que surgem a cada século.
-Cuide de sua vida, que inferno!
-...
-Minha espada ficou no maldito casarão. Preciso de outra.
-Então, vamos comprá-la.
-Na próxima parada.
Descendo pelo interior da floresta, com os pássaros pipilando e as fontes gorgolejando, Filicio e Claudio apreciavam aquela típica manhã de fim de inverno, sem perceber que nuvens floculentas e sinistras os seguiam pelo norte.Diz o conto que para os dois amigos ainda viriam muitas aventuras e desventuras.Mas isso é dar uma coruja a Atena, não é?
Esta é a narrativa que tenho o florilégio de começar.
2.
No meio do caminho para Saracina Filicio e Claudio fizeram uma lauta refeição de estalagem.Os rocins se refrescaram. Todos estavam muito cansados da viagem até o casarão Martus- onde, como soubemos, ocorreu um duelo fantasmagórico entre o primeiro e cinco outros cavalheiros.Filicio não deu mais detalhes da lide.
Mas agora, eis que eles chegam, sob um céu borralhento, à cidade sarracena.As ruas caiadas de ouro, os coruchéis e pingentes, davam alento a olhos viajados.
-Lembre-se, amigo, só viemos aqui obter informações e comprar uma espada.Só isso.
-Profecto, chefe.
-Por sorte, já estou vendo um comerciante de bugigangas.Ei, senhor!
-Sim, nobre cavaleiro.
-Eu...
-Deseja uma espada?Pois neste saco as tenho aos montes.Italianas, mouriscas, turcas, malaias, de Tiro e Sídon,da Pérsia...
Examinando a mercadoria, Filicio se encantou por uma cimitarra, com cabo de madrepérola, imitando a cauda de um leão. Mas quando foi tocá-la, caiu ao chão.Muitos acorreram a ajudar, outros a roubar.Claudio não se viu em condições de resistir à turba.Mas algo estranho aconteceu. A tal espada ergueu-se como um raio e começou a girar mortalmente no ar, lacerando os rapinadores, que deram no pé.Depois, caiu inerte, nos braços de Filicio.
-Ora, disse o comerciante, eu tenho um tesouro e não sabia.
Tentou tomá-la do adormentado, mas foi impossível. Uma força estranha a unia a Filicio, que repentinamente acordou.
-Onde a conseguiu?
-Das mãos de um homem que ia para o Levante.Não parecia interessado em mantê-la consigo, e a trocou por um punhado de barrocos.
O olhar de Filicio relampeava. Lá no alto, também começava a vampar uma tempestade.
-Quanto quer por ela?
-Nada.Ela é minha.Passe ela aqui, já.
-Chefe, disse Claudio, vamos partir já ou procurar abrigo, que vem uma tormenta daquelas!
-Psiu!Silêncio.Está ouvindo?
-Nada, só os trovões.
Aproveitando o momento, o negociante tentou tomar a espada sob uso da força. Mas deu com o nariz no chão. De novo e de novo, até que, da terceira vez, ribombou um trovão e tudo se fez branco em Saracina.Os básculos caíram, cavalos e elefantes se enfureceram. Os espelhos quebraram,as imagens se partiram, as lápides tiveram as inscrições apagadas e as velas se consumiram num único instante.
3.
-O seu sonho começa com uma citação muito especial: a frase final de O Morro dos Ventos Uivantes. Gosta deste livro?
-Adoro. É como um retrato vivo do Inferno.
-Quem são os cinco cavalheiros?Por que duelam?
-Não sei dizer.O motivo do duelo é decidir quem terá a posse de um tesouro.
-E o vulto?
-É como um lar romano, o espírito que toma conta da casa.
-Lesage, Greene e Vasari são todos nomes de escritores não muito famosos, eclipsados pelo tempo em que viveram.Já sabia disso?
-Acho que sim.Antes que pergunte, não recordo o nome dos outros dois.
-Seu amigo Borromeo, como o definiria?
-Ele é muito chato e medroso, mas eu o conheço desde a infância.Funciona como minha consciência, às vezes.
-Hum. E sua experiência no labirinto, como você a relacionaria ao sonho?
-Não sei. Ambos terminam apoteoticamente.Numa dissolução do mundo...
-A viagem a Saracina.A busca por uma nova espada. Ainda aqui a busca por tesouros.E a mensagem “não se aproxime daqui novamente”. Tudo se confunde num mito pessoal, não acha?
-Pode ser.
-Temo que-mas aqui estou dando uma de Artemidoro moderno- o homem que ia para o Levante é seu pai, e a espada é sua mãe, ou sua irmã, desaparecidas,trocada(s) por um punhado de barrocos, formando uma tríade de culpa, medo e proteção.O negociante representa pavores inconscientes, como o de perder o controle da situação, dos quais você não sabe se desligar e que, note-se, o conhecem muito bem(‘deseja uma espada?’).Mas tudo acaba bem, pois uma fonte de poder claramente feminina(note-se o formato lunar da espada e a força da natureza, a tempestade, cercando a cidade) promove a desintegração do mundo circunstante, através da luz branca tibetana, que se deve adentrar no estado de bardo.
-Talvez tenha razão. É uma boa interpretação.Tenho medo de que os outros comecem a apreciar o que aprecio. E o que aprecio eu tomo como meu de direito.
-E não hesita em empreender uma cruzada para tê-lo.Tornando-se, afinal, como seu pai.
-Max é muito diferente de mim, doutor.Muito diferente.Tenho a impressão de que ainda vamos ouvir muito de Max Albara.
Dizendo isso, Filicio olhou o relógio.Faltavam três minutos para terminar a sessão.Lá embaixo o centro da cidade efervescia.O sol a pino ricocheteava no piso do consultório.Um minuto, e a impressão de tempo irremediavelmente perdido.Fim da sessão.
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Noite na Aldeia
Quinta parte(Final)
A mais absoluta treva reinava no Jardim de Ondiny.Aqui e ali, somente,
se podia ver rosas brancas e vermelhas, do tamanho de balas de canhão, e tão pesadas quanto. Bastante diferente do Bosque de Bosco, ali a energia estava adormecida, sob luz irrisória, e eu caminhava ao lado da anfitriã sem dizer palavra. Ondiny luzia forte, mas nenhuma sombra produzia, como se fosse cercada por um véu.
Súbito, do alto veio um brilho rôxo, como uma espécie de esfera de línguas de fogo.
-Que é isso?, perguntei.
-Nada aqui É, aprendiz. Isto significa que o Tantragrama está aberto. Temos visitas.
Bock surgiu próximo à entrada do jardim.Ao longe, da parte invisível de um corredor, vinham passos. Ele se dirigiu para lá com decisão.Era uma presença não totalmente desconhecida, que eu já conhecia da vida e dos sonhos, envolta agora com mais névoas do País de Nod do que antes.Ondiny deixou-me e foi recebê-la, sua veste ardendo como fogo grego, maravilhosamente branca.
Roderick e Godenot chegam ao jardim.
-Bock. Tive certeza de quem você era na Côrte de Albion. A Ordem sempre é como um provedor. Ondiny...você é um enigma. Dentre os Inomináveis Banidos, você é a mais poderosa e inconformista.
-Eu não sou nada, Roderick. Eu não estou aqui para SER. Apenas represento idéias, eu e Bock. Somos necessários, simples adjetivos ou advérbios. Vocês, que nos baniram, nos criaram, e isto é tão óbvio...!
-Roderick, disse Bock,é simples: Um no Todo, Todo no Um. Não podem acintosamente nos excluir.
Aquelas palavras me queimaram o estômago.
-Fomos nós, simples idéias, os responsáveis pela Era Dourada da Magia. Praticamente não movemos um dedo sequer. Este Jardim, o Tantagrama, é tudo criação de vocês, de seu poder oculto.
Godenot caíra no chão, com ascos. Só neste momento Roderick me viu.
-E você, hein? Em que confusão se meteu, meu amigo...
Tive vontade de desmaiar. Em vez disso, fiquei atento a uma mancha vermelha que não saía de minha mente desde que eu havia chagado ali. Movimentava-se como uma miragem tão intensa quanto a Realidade, só que em escala menor. É horrível esta sensação de obviedade, como uma maçã ácida. Já dobrava o corpo para cair quando um silvo sinistro deu à luz uma forma meio marmórea, meio dourada, a meu lado, mãos e boca laivados de lâminas.Era Ambellu, o demônio, em seu aspecto mais horrendo.
-Não se movam. Minha rainha está vindo...conferenciar.
Bock e Ondiny me fitaram. Se eu pudesse, naquele momento suaria sangue. Roderick apertou os botões da camisa.
-Aprendiz, aprendiz, disse Ondiny, em franca desaprovação.Uma aura escoava de seus cabelos, indo para as mãos.
-Meu rapaz, pelo que vejo, estamos com grandes problemas!, concluiu Bock, que agora falava como o senescal que eu conhecera.
Parecia que o Jardim ficava cada vez mais claro. O fundo exibia já algum tapizamento. Eu sentara no chão, lagrimoso, à espera de um julgamento final. Pois eu fizera tudo errado. E de maneira ultrajante. Talvez, até, as garras de Ambellu já tinham me segado do corpo a cabeça e eu nem soubesse.Digo isso porque sentia um balanço acima dos ombros, um toque lene no pescoço e os olhos turvos. Então, um sopro no ouvido direito me acordou.Dizia:
-Oi, meu netinho. Pela primeira vez estamos juntos, os dois em carne e osso.
Foi como se eu fôra todos os castelos de areia do mundo, derrubados a um tempo pelo vento vindo do oceano.Cada partícula minha se esboroava e perdia, engolida pelas águas profundas e salgadas.Não lutei. Não fiz nada. Náo tinha mais consciência, os grumos tinham desaparecido.
Um foco de luz caiu sobre mim e Sweet Sixteen, vindo do fundo do Jardim. Seguiu-se uma onda de aplausos, e, de súbito, o salão se encheu de pessoas de fraque, cartola, lenços multicores, chapéus e monóculos, andando de lá para cá, presumidas, com expressões esculpidas, e havia crianças, também, brincando com os fustes das colunas, dependurando-se nas folhas das samambaias e glicínias, atirando seixos nos candelabros.Uma cortina violeta se abria, à direita. De lá, saíram dois homens de uniforme negro, quepes azul-escuros, de espadete na mão. Alguém gritava:
-Não!Não!Não façam nada a ela...!
Sob este comando, os dois pararam. Meu pai havia dado a ordem. Atropelado pelos meus oito irmãos e irmãs, quase ele cai sobre a bancada do teatro. Ulrich e Tilly foram os primeiros a chegar.Depois dos gêmeos, vieram Pan e Prosper, Giny e Lionel, Lisa e Merlin, grimpando, gritando como grilos e gafanhotos. As outras pessoas, assustadas, levavam as mãos à boca e segredavam.A maioria era de figuras conhecidas na Côrte, dentre condes, duques, marechais, generais, cientistas, pintores, literatos, gente que papai odiava, sendo ele um simples interventor do Estado.Mamãe, de capelina verde e forte sotaque russo, cuidava de acalmar a grita das crianças, embora estivesse mais preocupada em não parecer desairosa.Tio Rober, com sua barbona branca que se organizava em galáxias e as grandes luvas de químico no bolso, erguia meu pai de um só golpe, e dizia a sua filha calma e assisada, Suellen:
-Não vá falar com aquele desajustado de novo, senão...
Mas mesmo assim ela veio ao meu encontro, passando por meu velho avô Vincent, magro, de fronte encastelada e seu único filho Dylan, que do alto de seus doze anos já se achava um Lord Byron.Tudo se movia muito rápido, e eu só queria estar ao lado da minha vó, que conhecera até o momento só através de fotos- ela que deixara a família ainda adolescente para, como dizem, ir morar no Leste. Lá teria conhecido meu falecido avô, um piloto que durante a guerra precipitara-se sobre um dos hangares da Flugzeugbauer no bombardeio de Bremen.
Cortinas com os rostos distantes de Zeus e Juno se abriram em par, agora, a nossa esquerda, deixando entrar o sol de um dia de primavera, o que me fazia esquecer mais e mais, a uma velocidade incrível.Vovó não me parecia um segundo mais velha do que nas fotografias.Da parede defronte pululava o feixe de um projetor de imagens, azul-vermelho-amarelo, e Suellen saltou nele, que se espalhou por toda a parte. Foi assim que despertei do sonho, enquanto ela me abraçava, seu longo vestido axadrezado afogado em cores. Mas vovó deitara sobre seu braço direito, ao lado de uma estátua de Atlas. Houve um momento de escuridão.
-Mas que confusão, hein, meu amigo!, sussurrou Roderick. Somos apenas personagens, idéias, como Ondiny disse. Adeus.
Minha vó jazia ali, os enigmáticos olhos abertos, de modo que sobrevivessem para sempre.A seus pés, uma pequena galinha de porcelana.Isto ocorreu há muito, muito tempo atrás. Eu completei dezesseis anos neste dia.
FINIS
POSFÁCIO
E acabou-se a história.O que está perturbando vocês é o mesmo que me perturbou e tem perturbado. Mas os contos-de-fada verdadeiros têm que ter um fim.
Várias passagens postulam esclarecimentos, eu sei. ‘Por que tudo acabou tão rápido?Que você quis dizer com...?’, são, no entanto, perguntas de gente demasiado culta, que não sabe sentir, e que eu acusaria, no ato, de Filodoxia.
Por mim, prefiro as tardes trovejantes em que a chuva fina traz odores de lírio. As situações em que se está realmente solitário e se tem vontade de(perdoe-me, Jack London, por citá-lo...) ‘cantar com a goela ensangüentada a canção do princípio do mundo, a canção da alcatéia...’
Tenho lágrimas nos olhos.Não esperem demais de um pobre escritor.Nossa condição nos pesa sobre o peito enquanto miramos, lá em cima, em desabrido azul, heróis, bruxos, fadas, reis. E, cá embaixo, somos minúsculos, ainda em gestação.
Mas prosseguimos, cientes de que a divindade não é um bem, e nem é um mal, é só uma Idéia.
E nisto estamos de acordo com os Sábios, creio eu.
O autor.
Dedicatória
À minha vó Lali.
Aos meus amores bobos e efêmeros.
Aos que não se curvam.
Aos meus amores presentes.
Aos que dormem.
Belém, 7/12/2000-25/2/2001.